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14/02/2007

Condição sanitária em distrito indígena do Amazonas é alarmante

Grace Soares


O processo de urbanização indígena no município de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, resultou no agravo das condições sanitárias daquela região. Especificamente no distrito de Iauaretê, que concentra em sua área 2.700 habitantes, a situação é alarmante, lançando o risco epidemiológico a níveis altos. Foi o que constatou uma equipe formada por profissionais do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane (CPqLMD), unidade da Fiocruz no estado, e da Universidade de São Paulo (USP).


 Imagem feita em Iauaretê e que ficou com o segundo lugar no 1º Concurso de Fotografias em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Foto: Leandro Giatti)

Imagem feita em Iauaretê e que ficou com o segundo lugar no 1º Concurso de Fotografias em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Foto: Leandro Giatti)


O estudo, que teve início em março de 2005 e contou com um financiamento de R$ 80 mil da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) num convênio com a Faculdade de Saúde Pública da USP, tem uma vertente social forte. Tanto que a metodologia adotada foi a “Pesquisa-ação”, que, um tipo de estudo que envolve pesquisadores e pesquisados em prol do estabelecimento conjugal de soluções para uma problemática. É uma via de mão dupla, pois endossa a ação participativa das comunidades. “Tratou-se, inicialmente, de um projeto de educação em saúde. No entanto, na metodologia de pesquisa, buscamos adquirir conhecimentos, vivenciar aquela realidade e, juntos, montar um diagnóstico da situação com a participação da população local. É isso o que chamamos de pesquisa-ação”, ratifica o pesquisador do CPqLMD Leadro Giatti, que é doutor em saúde pública pela USP.


Giatti conheceu a realidade de Iauaretê em 2003, quando representava o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), atuando como analista ambiental em São Gabriel da Cachoeira. Sensibilizado com a precariedade no abastecimento de água, com a falta de tratamento de resíduos sólidos e com a disposição de dejetos humanos ao ar livre, surgiu a idéia de identificar, cientificamente, os principais problemas de ordem sanitária e sócio-ambiental enfrentados pelas populações indígenas.


O distrito é formado por dez vilas, agrega 15 etnias distintas e tem como língua predominante o tukano, além do português falado pela maioria. Acredita-se que uma das condicionantes para a mudança no modo de vida tradicional indígena é a própria concentração populacional na área. Sem espaço e com práticas sanitárias incompatíveis com a atual concentração populacional, as populações expandiram de forma desordenada, aumentando a incidência de doenças e contribuindo para o declínio na qualidade de suas vidas. “Para consolidar a metodologia escolhida era preciso saber se as comunidades apresentariam alguma resistência à proposta do nosso projeto. Para tanto, foi feita uma primeira visita em fevereiro de 2004, na qual conversamos com as pessoas sobre a proposta. Observada a receptividade, submetemos o projeto ao Conselho Nacional de Ética e Pesquisa e à própria Fundação Nacional do Índio (Funai)”, explica Giatti.


A partir daí, a pesquisa enveredou por duas frentes de ação: as reuniões comunitárias e o diagnóstico ambiental. Foi feita uma reunião em cada uma das dez vilas, nos meses de março, maio e julho de 2005, o que totalizou 30 encontros. O envolvimento de líderes comunitários nas atividades ajudou a mobilizar o máximo de pessoas possível, obtendo-se uma média presencial de 25 indivíduos por reunião. “Em um primeiro encontro utilizamos como técnica de envolvimento o mapa-falante, que é um momento reservado aos participantes para apresentarem, na forma de desenho, o contexto ao qual estão inseridos. Deixamos, ao final da reunião, uma máquina fotográfica nas vilas”, afirma Giatti. Os mapas reproduzem um diagnóstico visual, fruto da visão que as comunidades têm de suas vidas e de tudo que as cerca. A mediação dos pesquisadores entra para avaliar esses produtos, estimulando-os a refletir de uma forma mais profunda sobre os aspectos sanitários, sócio-ambientais e de higiene.


 Os mapas-falantes refletem a visão que as comunidades têm de suas vidas (Foto: Leandro Giatti)

Os mapas-falantes refletem a visão que as comunidades têm de suas vidas (Foto: Leandro Giatti)


O segundo momento é a exposição das fotos produzidas pelos comunitários na forma de painéis. “Selecionamos as imagens consideradas como sendo as mais representativas daquela realidade. Notamos o quanto eles ficam impressionados com o resultado. Aproveitamos e discutimos as possíveis causas e as soluções para os problemas encontrados”, ressalta o pesquisador.


Retoma-se a ferramenta do mapa-falante, no entanto, agora requisitando dos participantes uma postura mais crítica. É chegada a hora de realizar um planejamento elencando as possíveis propostas de resolução dos problemas a curto, médio e longo prazo. O que, na percepção deles, seria mais viável de se resolver no período de um ano? A construção de um poço? E em cinco anos, é tempo suficiente para gerar o abastecimento de água em todo o distrito? Questões dessa ordem foram pontuadas espontaneamente pelos indígenas.


 

 Com os mapas-falantes é possível saber como os índios vêem os aspectos sanitários, sócio-ambientais e de higiene das localidades em que vivem (Foto: Leandro Giatti)

Com os mapas-falantes é possível saber como os índios vêem os aspectos sanitários, sócio-ambientais e de higiene das localidades em que vivem (Foto: Leandro Giatti)


Ao mesmo tempo, outros membros do projeto dedicavam-se ao diagnóstico ambiental. Este compreendeu a execução das seguintes ações: inquérito parasitológico (amostragem para exame de fezes); diagnóstico da geração dos resíduos sólidos (tipo de lixo, pontos de acumulação); identificação das fontes de água (nascentes, poços rasos, profundos); análise da qualidade da água sob aspectos microbiológicos; georreferenciamento da informação (marcação via GPS de todos os domicílios); e análise da contaminação do solo por cistos/ovos de parasitos intestinais. Estudos laboratoriais comprovaram que as fontes de água mais confiáveis (que apresentavam baixos níveis de contaminação) são os poços profundos, no entanto, somente três ou quatro vilas têm acesso a eles, obrigando o contingente restante a sujeitar-se às alternativas altamente contaminadas.


“Fizemos quatro viagens e ficávamos, em média, entre 15 e 20 dias em campo. As análises de água e os exames de fezes realizamos in loco, mas os testes de contaminação do solo precisamos mandar para laboratórios em São Paulo. O interessante é que houve uma interação e participação significativas dos pesquisadores em todas as etapas. Muitos deles até poderiam aguardar o envio das amostras aos seus laboratórios, sem que fosse preciso deslocar-se para o campo, o que não aconteceu. A interatividade foi fundamental para o bom andamento da pesquisa”, salienta Giatti.


São Gabriel da Cachoeira situa-se a uma distância de 850 quilômetros de Manaus, em linha reta, e só tem acesso por água ou ar. Da sede do município para Iauaretê são mais dois dias de barco pelo rio Waupés, afluente do Rio Negro. O obstáculo da distância territorial e a dificuldade de acesso à localidade foram parcialmente contornados com o apoio da Força Aérea Brasileira. E como uma das prioridades do projeto é manter o acompanhamento dos trabalhos na região, Giatti reformulou a pesquisa (implementando novos aspectos) e submeteu a proposta à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), obtendo aprovação no Edital MCT/CNPq/Fapeam 018/2004. O financiamento, no valor de R$ 52 mil, está garantido até 2008. “A continuidade é uma vertente importante na solução do problema. Não dá para esperar uma mudança na mentalidade das pessoas em três ou quatro reuniões. A nossa meta é continuar lá”, garante Giatti.


A resposta às comunidades veio em 2006, durante a apresentação dos resultados, os quais puderam ser socializados, também, para mais de 15 organizações não-governamentais indígenas, prefeitura, demais instituições e lideranças locais. Uma contribuição do projeto ao poder público veio na forma de concurso. Concorrendo com o tema A construção de mapas falantes e o processo de pesquisa-ação em comunidade indígena da Amazônia, a pesquisa foi contemplada no concurso 002/2006 da Secretaria de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, em cooperação com os ministérios da Saúde, da Educação, do Meio Ambiente e da Integração Nacional. “É uma chamada para os selecionados participarem da construção de uma política de educação ambiental voltada para o saneamento. A nossa participação foi importante para dar visibilidade às contribuições do nosso projeto. Foram contempladas cinco propostas por cada região do país”, diz Giatti.

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