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27/05/2020

A Cultura da Sobrevivência, as Epidemias e a História na América Latina

Marcos Cueto*


Há um bom tempo o drama, as repercussões e as representações socioculturais das epidemias despertaram o interesse dos historiadores da América Latina. Em alguns casos serviram para examinar períodos históricos de países ou da região, ou para realizar comparações entre nações (Molina del Vilar, 2013; Cueto, 2007; Smallman, 2007). O objetivo deste texto é fazer alguns comentários sobre estes estudos, apresentar reflexões sobre as respostas as epidemias do século 20 e juntar uma breve bibliografia com esperança que sirva para futuras investigações.

Seguindo uma narração cronológica é importante destacar os estudos clássicos de Crosby e Cook sobre com a chegada de terríveis enfermidades desconhecidas para a população indígena das Américas que facilitaram a conquista europeia do século 16 (Crosby, 1972; Cook, 1981, 1988). Estes estudos destacaram uma série de investigações que mediram a magnitude do “colapso geográfico” nestas populações em diferentes regiões enquanto outras questionaram que o descenso da população americana produzida por epidemias teve uma magnitude maior que a mortalidade produzida pela violência, exploração e escravidão (Alchon, 2003).

Epidemias do período colonial têm sido estudadas não somente por suas consequências demográficas, mas também por que revelavam a influência da Igreja -que as explicavam como castigos divinos- e justificavam seu quase monopólio no cuidado aos enfermos nos hospitais e nos enterros (Molina del Vilar, 2013). Esta influência se enfraqueceu durante o século 18 com o despotismo ilustrado das coroas espanholas e portuguesa que procuraram secularizar as soluções às epidemias, especializar a formação médica e fortalecer os primeiros organismos de saúde (Cooper, 1965). Uma das intervenções mais usadas foi a vacinação para prevenir a varíola utilizada pouco depois que foi projetada na Inglaterra.

Os investigadores que analisaram a vacinação em diferentes anos do século 19 mostraram a insuficiência da aplicação desta medida, assim como as resistências populares às mesmas (Férnandez, 2010, Silva, 1992, Ramírez, 2000). Durante o século 19, os historiadores examinaram como as epidemias produziram interseções da saúde com a urbanização (seguindo quase sempre um padrão de rápido crescimento das cidades com incremento limitado de infraestrutura sanitária) e aprofundamento das desigualdades sociais (Thompson, 1998; Chaloub, 1996; Márquez Morfin, 1994). O cólera do século 19 –  uma das grandes pandemias que atravessaram o mundo – motivou análises sobre seu impacto no comércio marítimo, as respostas oficiais, a multiplicação de curandeiros populares e a reorganização da assistência sanitária (Aguerregaray, 2019; Pascua, 2017; Rebelo-Pinto, 2016; Santos, 2016; Pimenta 2011; Stevens, 2019; Peniche Moreno, 2016).

O estudo dessa doença também foi um bom mote para entender a dinâmica e a mortalidade da escravidão afro americana (Kodama, 2012). As discussões médicas sobre o cólera em meados do século antepassado atraíram a atenção dos pesquisadores por sua intensidade, mas também pela controvérsia sobre o fator do contágio ser externo ou local  (concepções que favoreciam quarentenas ou saneamento ambiental, respectivamente). Estas discussões se mesclaram com a reconfiguração hierárquica dos espaços urbanos, o surgimento de utopias de cidades salubres e a produção de metáforas morais sobre os doentes.

As epidemias de varíola, febre amarela e peste bubônica na virada do século 20, assim como a reação à pandemia de gripe de 1918, foram objetos de numerosos estudos (Carrillo, 2005; Nascimento & Duarte, 2013; Márquez Valderrama, 2001; Souza, 2013; Bertolli Filho, 2003; Dall’ava, 2013; Bertucci-Martins, 2004; Goulart, 2005). Este momento foi marcado pela emergência da bacteriologia e a modernização de vacinas, soros e métodos de desinfecção, quando foram criados os primeiros organismos sanitários nacionais que assumiram funções municipais. Foram patentes o pânico e a resistência da população (como no famoso caso da revolta carioca de 1904 e na gripe de 1918, contra a qual não havia tratamento eficiente) (Hochman, 2012).

Um interessante estudo que combina perspectivas da história ambiental, história demográfica e história da saúde é o de Zulawski, que argumenta que a peste magnificou a urbanização caótica sem sanidade em San Juan, Porto Rico, e os efeitos do colonialismo que discriminava a população de origem africana (Zulawski, 2018). Entre os atrativos do estudo da febre amarela estiveram a complexidade política e cientifica de sua origem e controle, que incluíram campanhas anti-Anopheles em várias cidades do mundo, assim como norte-americanização da saúde pública latino-americana, que abandonou o modelo francês.

Gaitors y Yepez argumentaram que, desde começos do século 19, as respostas às epidemias de febre amarela entrelaçaram a política e a economia, quando se ratificaram as esperanças governamentais na exportação de matérias primas como o motor do crescimento (Gaitors, 2018; Yépez Colmenares, 1995). Para Delaporte, os estudos da febre amarela foram o início das tradições fundacionais da medicina tropical. Para Benchimol, as discussões sobre a febre amarela marcaram a transição contraditória das ideias miasmáticas ao reino da bacteriologia entre as elites médicas (Delaporte, 1991; Benchimol 1999). Segundo Espinosa, o controle da febre amarela no Caribe explica fenômenos políticos fundamentais como a independência de Cuba da Espanha -um processo em que participaram médicos e soldados dos Estados Unidos- e o surgimento do imperialismo norte-americano (Espinosa, 2009).

As respostas às epidemias em meados do século 20 serviram para que os investigadores analisassem a legitimidade do poder, seus argumentos populistas, e a recriação da segregação e do estigma em novos contextos. O caso da luta contra a malária durante a segunda metade do século 20 foi estudado como um paradigma das características de projetos desenvolvimentistas antes e depois da Guerra Fria. Esses projetos estavam convencidos de seu papel como instrumentos para eliminar o comunismo, que, por sua vez, nesta visão, se apoiaria no desespero causado pela miséria e a enfermidade generalizada (Lopes, 2019; Cueto 2007; Silva 2011). Também neste período as investigações sobre a eliminação da varíola serviram para mostrar a articulação dos organismos sanitarios latino-americanos com agências internacionais que erradicaram essa doença em 1980 (Hochman, 2009; Agostoni 2016).

Nos anos finais do século 20, o estudo da Aids serviu aos historiadores para dar maior protagonismo a novos atores, como ativistas, agentes comunitários, enfermeiras, pacientes, curandeiros, e mães de família, que participaram ativamente nas discussões e nas práticas ligadas à saúde (Marques, 2003; Nascimento, 2005; Vianna & Nascimiento, 2013).  Estes estudos mostraram a articulação entre a homofobia e o silêncio governamental inicial, a artificialidade da separação entre a reabilitação, prevenção e tratamento, e a força do que é a “Ciência Cidadã” (Cooper, 2016). No caso da Aids, tratou-se de esforço informado de pessoas não associadas às comunidades médicas profissionais por programas inclusivos de saúde. A Aids permitiu este tipo de enfoque porque é uma doença que transcende o âmbito biomédico e envolve o trabalho de líderes comunitários, ativistas e periodistas.

Alguns dos estudos da história das epidemias no século 20 analisaram o legado das respostas oficiais insuficientes (Cueto & Palmer 2016). Neste sentido, gostaria de englobar estas respostas no conceito de “Cultura de Sobrevivência” que teve duas características. A primeira consiste no pressuposto de que o controle das enfermidades epidêmicas era sobretudo um assunto tecnológico; cujo cumprimento dependia de poucos especialistas e uma boa administração.

Desta maneira, fumigações, medicamentos, vacinas ou hospitais eram apresentados como “balas mágicas”. Além disso, assumia-se que a “racionalidade” iria se impor a outros tipos de práticas sanitárias, como as medicinas domésticas, indígenas, asiáticas ou afro-americanas que eram condenadas como “primitivas” pelo Estado. A ênfase na tecnologia relegava a construção de sistemas sanitários sólidos e desdenhava da participação comunitária no desenho dos programas de saúde. As trombetas triunfalistas da tecnologia assumiam que o controle das epidemias podia ser alcançado sem a melhora das condições de vida da maioria da população. Segundo um padrão oficial, não era responsabilidade dos trabalhadores da saúde lutar por uma reforma social que minimizasse a vulnerabilidade estrutural na sociedade; tratava-se tão somente de atender emergências com os recursos disponíveis.

Desta maneira, as respostas às epidemias foram paliativas e assistencialistas, com certa verticalidade e autoritarismo, e nas quais apenas os especialistas e as elites saberiam o que convinha à sociedade. Esta forma de assistência de caráter paliativo normalizou a insuficiência do acesso pleno a serviços médicos e infraestrutura sanitária, pelas pessoas que não eram consideradas “cidadãos plenos”. Em alguns casos, exagerou-se sobre a eficácia de condutas higiênicas para argumentar que os pobres - que não seguiam seus preceitos - eram os culpados por sua própria sorte nas calamidades sanitárias (sem nenhum questionamento sobre as dificuldades no cumprimento dos “ditados da higiene” nos bairros miseráveis).

Produziu-se, assim, uma percepção limitada da saúde pública; uma saída transitória das emergências. Estas atividades fugazes criaram expectativas de curto prazo, que supunham que os cuidados de saúde oficiais eram apenas dádivas, como fumigações, vacinações e hospitais, para que os menos favorecidos pudessem sobreviver. Desta maneira, fomentou-se uma resignação às epidemias seguintes. Os cuidados de saúde hegemônicos renunciaram a constituir o que deles esperavam as melhores versões do capitalismo: isto é, com a educação, deveriam garantir igualdade de oportunidades, contribuindo ao progresso individual com base no talento e esforço, independentemente das marcas de nascimento (como lugar, classe social, gênero ou etnia).

A segunda característica da Cultura de Sobrevivência está relacionada a dois problemas fundamentais dos sistemas de saúde latino-americanos: a descontinuidade e a fragmentação institucional. Muitas campanhas contras as epidemias acabaram diluindo-se passada a emergência. Terminaram provocando confusão e um retrocesso desordenado nos programas sanitários. Não se considerou adequadamente a avaliação das dificuldades ou as conquistas alcançadas. A descontinuidade se instalou como uma característica essencial dos trabalhos sanitários nos surtos epidêmicos.

Entretanto, esta não foi a única maneira de responder às epidemias. Existiu um padrão alternativo de resistência, minoritário, que teve uma perspectiva mais holística, e foi apoiado por trabalhadores de saúde que priorizaram a participação comunitária, reconhecendo que a diversidade cultural exigia adaptação das mensagens sanitárias. Também acreditavam que as demandas para melhorar a saúde pública eram uma tribuna para lutar por reformas sociais. Os que seguiram esse padrão alternativo careciam geralmente de um marco teórico coerente, não eram parte do núcleo de faculdades universitárias e tiveram dificuldade em se sobrepor às assimetrias detidas pelo poder.

É importante assinalar que é frequente encontrar casos de compromissos e incoerências tanto no padrão da Cultura de Sobrevivência como na alternativa, o que revela a instabilidade institucional nos países latino-americanos e a insegurança da maioria dos empregos sanitários, obrigando os trabalhadores da saúde a sobreviver às adversidades.

Hoje, as respostas fragmentadas, em vários países, e a obsessão por “balas mágicas”, de alguns governantes desinformados e oportunistas, interessados em encontrar um paliativo e, sobretudo, sobreviver politicamente, é parte do legado vivo da Cultura da Sobrevivência.

*Marcos Cueto é pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e editor científico da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos

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