24/02/2014
A distância entre Parnaíba, no Piauí, e Veranópolis, no Rio Grande do Sul, pelas estradas, é de 3.924 Km. Em novembro de 2013, nas ondas da internet, essas duas cidades não pareceram estar tão distantes assim, já que o óbito de duas adolescentes, uma de 16 e outra de 17 anos, chocou o país. O motivo foi o mesmo: cyberbullying. As meninas não resistiram à vergonha e à humilhação de verem suas fotos íntimas circulando nas mídias sociais, especialmente o Facebook, e se suicidaram. Os dois casos trouxeram à tona a questão do cyberbullying e seus efeitos nas vítimas. Um mês antes, a jovem Francielly Santos, de 19 anos, de Goiânia (GO) teve suas fotos e vídeos íntimos vazados na Internet pelo ex-namorado. A reação daqueles que assistiram ao vídeo, que se tornou viral, foi de recriminar a moça, com comentários agressivos e até xingamentos, e repassar as imagens, tornando a situação insustentável para ela e sua família. Fran deixou o emprego e mudou de aparência para se livrar do excesso de exposição, e ainda denunciou o caso à polícia: o processo deve seguir para julgamento possivelmente este ano.
Estudo da SaferNet apontou que, embora 49% dos jovens afirmem temer sofrer bullying nas redes sociais, muitos não admitem que o fazem, embora também isso não seja tão incomum nas redes sociais (Imagem: www.endcyberbullying.org)
Nos casos de Giana e Julia, as adolescentes que se mataram, não havia – segundo relatos de familiares e amigos – informações sobre depressão, uso de drogas ou problemas psiquiátricos que pudessem explicar um quadro de sofrimento que levasse ao suicídio. “Nem toda moça que é exposta dessa maneira tão violenta, desrespeitosa e danosa à autoimagem, necessariamente evolui para um suicídio. É possível que algumas fiquem deprimidas, outras podem ficar marcadas para sempre, mas elas conseguem lidar com isso. Porém, o fato é que em uma situação de violência de grande estresse, a minha prática de psicanalista ensinou que temos que prestar muita atenção na crise psíquica”, explica o pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict), o psicanalista e psiquiatra Carlos Estellita-Lins, que coordena o PesqSUI - Grupo de Pesquisa de Prevenção do Suicídio. Isto explicaria a atitude drástica tomada pelas adolescentes: “Simplificando, eu diria que essas moças perderam alguma coisa do seu ideal e de sua integridade, e não conseguiram continuar vivendo com essa perda, que foi muito grande”, afirma Estellita-Lins.
Uso da internet entre jovens
Uma pesquisa sobre os hábitos na web com 2.834 jovens, de idade entre 9 e 23 anos, no Brasil inteiro, realizada pela SaferNet, organização não-governamental que trabalha no enfrentamento de crimes e violações aos Direitos Humanos na Internet, e a operadora de telecomunicações GVT, aponta que 62% dos jovens utilizam a rede todos os dias e, desses, os que estão na faixa entre 18 e 23 anos, 86% do total, acessam diariamente.
A pesquisa, que foi feita entre o segundo semestre de 2012 e o primeiro semestre de 2013, aponta que, dos entrevistados, 60% partilham dados pessoais e 68% já conheceram amigos pela internet. Cerca de um em cada quatro jovens já namorou pela internet, sendo esse um hábito entre 35% dos jovens de 18 a 23 anos. O sexting – envio e divulgação de conteúdos eróticos, sensuais e sexuais com imagens pessoais pela internet, via computadores ou celulares - é praticado por 6% dos jovens entrevistados e, desses, 63% já enviaram mais de cinco vezes as imagens. Dos mais de 2.800 entrevistados, 20% receberam textos ou imagens sensuais e eróticas. Os baixos números surpreendem, mas segundo análise dos especialistas da GVT e da SaferNet, a hipótese é que haja uma subnotificação desses casos, ou seja, os jovens temem dizer que enviam ou recebem esse tipo de imagem. O jovem N.L., de 22 anos, confirma: “Sexting? Quem nunca fez isso?”, afirma as gargalhadas, ao explicar que o envio das imagens é algo corriqueiro entre os jovens.
Outro dado que aparece nas pesquisa é sobre o cyberbullying. Embora 49% dos jovens afirmem temer sofrer bullying nas redes sociais, muitos não admitem que o fazem, embora também isso não seja tão incomum nas redes sociais. Dos entrevistados, 35% tem um amigo que já sofreu cyberbullying e 12% admitem já terem sofrido agressões pelas mídias sociais.
“Já sofri e já fiz, muito!”, explica N., cujo comportamento é corroborado por pesquisas que mostram que aqueles que praticam o bullying já o sofreram anteriormente. “Não que todos os que sofreram se tornem agressores. Mas há uma frequência epidemiológica que enxergou essa passagem de vitimizado para vitimizador”, explica Carlos Estellita-Lins. Para se defender, o jovem N. usa uma tática simples: “o legal é não entrar na pilha. Aí, a pessoa vê que você não está nem aí e desiste”, afirma.
Estudos realizados pelos pesquisadores do PesqSUI e por outros especialistas, apontam que o bullying não está ligado a um jovem que seja considerado o “menino mau ou a menina má” da escola ou do grupo, o fenômeno é coletivo, explica Estellita-Lins: “muitos atores participam do bullying e o que se vê, geralmente, é uma omissão dos elementos que assistem ao bullying”, afirma. Segundo ele, pessoas consideradas diferentes ou com baixo handicap ou com algum tipo de deficiência são bastante notadas no ambiente escolar, daí se tornarem vítimas em potencial. Para o pesquisador, é fundamental que as escolas procurem “fortalecer as turmas, não apenas para lidar com situações de conflito, mas fortalecer o padrão da escola de respeito as individualidades. E nós, os responsáveis, temos a ver com isso. Não podemos assistir a isso e nos calarmos”, destaca.
Imagem x audiência
Os jovens veiculam sua imagem nas redes sociais e na internet. Quanto mais são admiradas por todos, mais populares se tornam. Para o bem ou para o mal. No caso de cyberbullying, chama a atenção a violência dos comentários e a indiferença ao sofrimento do outro. Em geral, jovens que têm um perfil de afastamento social, dificuldades ou inabilidades sociais, falta de contato com o mundo, que sofrem de distimia (uma depressão distinta) na adolescência, por exemplo, podem ser os mais afetados pelo cyberbullying.
Casos em que os jovens divulgam nas mídias sociais as suas tentativas de suicídio ou se despedem em rede, conseguindo assim uma audiência – atenção – que supõem não terem durante a vida, também vêm aumentando, talvez ampliada pela indiferença ou incentivo ao ato extremo. Será que falta solidariedade? Saber olhar o sofrimento do outro? Para o pesquisador do PPGICS a explicação pode ser outra: “quando aparece um jovem se suicidando on-line ou quando alguém pede instruções de como se matar e efetivamente recebe essas instruções anônimas na rede, temos aí eventos novos, que talvez devam ser pensados sob a rubrica mais geral dessa violência e banalização dela através da imagem digital”, destaca.
Estellita-Lins também chama a atenção para a “construção de uma sociedade do espetáculo, como falou Guy Debord, nos anos 1960” e evoca também Susan Sontag, que em 2003 já falava sobre a violência das imagens no jornalismo impresso e televisivo, e que pode ser estendida à web. Segundo o pesquisador, “ao contrário de despertar piedade ou respeito pela experiência de sofrimento, o que se passa é efetivamente uma insensibilização do cidadão em relação à imagem do sofrimento e a experiência de violência”.
A tese de Mariana Betshe, “Experiência, narrativa e práticas infocomunicacionais: sobre o cuidado no comportamento suicida”, orientada pelo professor do PPGICS, tenta interrogar e investigar o bilhete de suicídio não só sob os aspectos do aviso, do individual e do intrapessoal, mas do interpessoal e também do midiático. Ou seja, o fato de que circulam efetivamente mensagens e bilhetes que não são necessariamente escritos no papel, mas colocados na rede digitalmente, que alcançam de maneira rápida muitas pessoas. A pergunta é: como salvar “Gianas e Julias”?
“Sabemos que a despedida muitas vezes é um momento extremo, em que a pessoa já tomou a decisão. Contudo, há uma ambiguidade nesse pedido e não uma forma de comunicação. A questão seria: como poderíamos acolhê-las na rede digital e tentar apoiar esse tipo de iniciativa?”, questiona o pesquisador do PPGICS. Como esse é um problema mundial, alguns projetos já estão sendo implementados, como é o caso do Projeto Durkheim, da Geisel – School of Medicine, de Dartmouth, em Hanover/EUA, que visa a monitorar as redes sociais em busca de mensagens que indiquem alguma intenção de uma pessoa em se matar. Outra opção é a página “Web 2.0 Suicide Machine”, que ao contrário do que o nome indica, não incentiva o suicídio, mas elimina os perfis de todas as contas do usuário da internet, fazendo – o que eles chamam – de um “suicídio virtual”. Sem falar, no projeto da SaferNet, que acolhe as denúncias de cyberbullying ou a parceria da própria SaferNet com a GVT, que disponibiliza orientações on-line para segurança no uso da web.
Para Carlos Estellita-Lins, isso não é suficiente, é necessário o engajamento de toda a saúde pública no problema. “Precisamos juntar esforços e nos articular com outros setores interessados no adolescente e no jovem”, afirma o pesquisador. “O problema é que, no Brasil, a psiquiatria da infância e da adolescência se encontra completamente desarticulada enquanto especialidade. Ela seria um espaço multidisciplinar para albergar esse tipo de reflexão”, afirma.