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06/02/2014

Estudo do Icict investiga ligação entre saúde e candomblé

Graça Portela


“Eu sei que meu trabalho é polêmico, que gera espanto, debate”, com essas palavras a psicóloga Clarice Portugal, aluna do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), define sua dissertação de mestrado. O trabalho Da linguagem dos infortúnios às narrativas de doença: o sofrimento psíquico e a construção de itinerários terapêuticos entre adeptos do candomblé tem como objetivo investigar as narrativas de doença em torno do sofrimento psíquico – com ênfase em depressão e suicídio – entre os adeptos do candomblé, de modo a elucidar como ele é construído, compartilhado e percebido por quem oferece e demanda cuidado no terreiro. Também são consideradas as múltiplas inserções sócio-institucionais dos sujeitos entrevistados e os itinerários de informação e conhecimento envolvidos na construção pessoal e social da doença mental nos “axés” (terreiros).

A pesquisadora ouviu 11 pessoas, entre homens e mulheres, com idades variando de 19 a 50 anos, de classe média ou classe média alta, com grau de instrução do nível médio de ensino até a pós-graduação e que já frequentaram o serviço público de saúde, como postos, hospitais ou os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). O trabalho de campo envolveu três terreiros de candomblé, dois no estado do Rio de Janeiro e um em Salvador, Bahia.

A escolha do candomblé não foi aleatória, como explica Clarice Portugal, que partiu da sua experiência profissional e pessoal para pesquisar mais a fundo a relação entre os praticantes do candomblé e o atendimento destes no serviço de saúde. “Eu decidi abrir um pouco essa caixa preta e olhar para essas experiências de sofrimento mais de perto, tentando compreender como as pessoas, dentro de uma situação de desespero, foram criando caminhos de informação e conhecimento em saúde, como se deu a negociação com as diferentes esferas – tanto a de serviços de saúde quanto à religiosa”, fala. A psicóloga afirma que ficou impressionada com as dificuldades apresentadas nos relatos dos entrevistados na relação com os profissionais de saúde, onde os pacientes ouviam desde “paciente fora de possibilidade terapêutica” até “você não tem nada”, embora eles apresentassem um intenso sofrimento.

Segundo Clarice, os entrevistados, antes de chegar aos terreiros de candomblé, passavam por sintomas somáticos e físicos, como desmaios ou ausência, perda de consciência ou localização espaço-temporal, que seriam relacionadas à “manifestação” ou domínio de alguma entidade espiritual, além de inflamações, manifestações cutâneas, dores de cabeça, perda de controle do esfíncter (falta de controle da urina e das fazes), dentre outros, que levavam à queda do rendimento no trabalho ou nos estudos e os expunha a situações vexatórias em público, que geravam reações de desconfiança, passando por agressões verbais ou físicas, até a discriminação e o isolamento, que por si só causavam o aumento do sofrimento pessoal e a depressão.

Essa trajetória, que passa pelo atendimento médico, mostra-se extremamente dolorosa, como relata Clarice Portugal: “Um dos entrevistados afirmou que tinha um gigantesco espectro de manifestações, desde a perda de controle de esfíncter a manifestações de entidades, passando por ‘ver espíritos’. Sua mãe o levou ao médico e lá ele recebeu o diagnóstico de que iria morrer em seis meses, pois – segundo o profissional que o atendera – ele tinha uma taquicardia e que ‘haveria um momento em que o coração não resistirá’. A mãe do rapaz ficou desesperada.” Para a psicóloga, “essa experiência de desengano já é por si só um fechamento do processo de cuidado desses serviços de saúde”, analisa.

A pesquisadora também chama a atenção para o fato de que os sintomas difusos levam a uma dificuldade de diagnóstico. “As pessoas que entrevistei tinham diversas ‘manifestações’, que em termos médicos não fecham o diagnóstico. E isso acaba sendo retratado como o ‘não ter nada’ e as pessoas ficam sem possibilidades terapêuticas”, afirma e alerta: “essa ausência do conhecimento médico fecha totalmente as portas ao paciente”. Clarice também afirma que alguns profissionais tentavam explicar os sintomas como “isso é coisa de macumba” ou “isso é coisa de santo”, mas sempre de forma pejorativa. “É impressionante que os médicos que diziam isso, de acordo com as narrativas dos entrevistados, em nenhum momento disseram: ‘puxa, volta aqui na semana que vem’. Por que uma possibilidade exclui a outra?”, indaga ela.

Para Clarice, como não há muito espaço na esfera da saúde para se lidar com esse sofrimento, “as casas de candomblé acabam sendo um lugar onde ele é acolhido e tem a possibilidade de ser ressegnificado, transformado e, muitas vezes, até finalizado”. Segundo a pesquisadora, o trabalho aponta que deve haver um estreitamento na relação dos serviços de saúde com os campos das religiões afro-brasileiras, onde várias instituições, como a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab) ou Instituto Nacional e Órgão Supremo Sacerdotal da Tradição e Cultura Afro Brasileira (INAEOSSTECAB) realizam seminários, palestras e feiras sobre saúde nos terreiros de candomblé, em parceria com os serviços de saúde locais.

“Temos que ajudar a essas organizações a consolidar essa relação entre as casas de candomblé e os serviços de saúde mental. E é importante que nós, dentro de uma instituição de pesquisa como é a Fiocruz, nos comprometamos com isso”, finaliza.

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