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31/05/2017

Demarcação de terras indígenas é tema de debate na Fiocruz

Vilma Reis (Abrasco)


“Nesta hora em que estamos aqui conversando, alguém deve estar matando um índio, só que nós só vamos saber muito mais tarde, quando o índio já estiver morto. É a cobiça da terra, a cobiça do subsolo e a cobiça das riquezas naturais” comentou alguém num auditório repleto de expectativa pelo início do debate #DemarcaçãoJá – sobre os Retrocessos nos Direitos Indígenas no Brasil, que aconteceu na terça-feira (30/5), na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro. A frase é de Noel Nutels, sanitarista que adotou a causa indígena, e a teria dito na CPI do Índio, em 1968. Tristemente atual.

“A história da matança de indígenas no Brasil nunca deixa de ser história, nunca vira passado, é um relato diário, uma notícia do agora”, pontuou Carlos Coimbra, coordenador do Grupo Temático de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que juntamente com a pesquisadora Ana Lúcia Pontes, também do grupo, coordenou e organizou o debate. “Este debate sobre os retrocessos nos direitos indígenas no Brasil começou por ser uma atividade ‘professor e aluno’ mas foi crescendo e quando vimos estávamos inseridos na programação dos 117 anos da Fiocruz, após um convite da própria Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, que conversou comigo sobre este cenário atual de grande retrocesso de direitos e de aumento do racismo étnico. Os conflitos fundiários estão se acirrando e não temos conseguido acompanhar tudo com respeito. Espero que este debate, promovido pela Abrasco e pelo Museu do Índio, mostre toda a problemática e nos traga ainda algumas conclusões” disse Coimbra, compondo a mesa de abertura que contou com a participação do secretário executivo da Abrasco, Carlos Silva, da presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, da presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc-SN), Justa Helena Franco, do diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Hermano Castro.

Carlos Silva e Nísia Trindade pontuaram a urgência para debater a causa indígena na Saúde e comentaram o apoio mútuo que a Associação e a Fundação estão reforçando com a construção da 12ª edição do Congresso de Saúde Coletiva que acontecerá no campus da Fiocruz, em Manguinhos, na última semana de julho de 2018. “Em nome de Gastão Wagner que hoje não pode estar aqui, cumprimento especialmente o GT de Saúde Indígena e sua luta convincente e persistente pela causa do índio, este debate fortalece nossa parceria com a Fiocruz. Temos a perspectiva de realizarmos nosso próximo Abrascão aqui neste campus e isso nos mobiliza muito e reforça nossos laços de luta pelos direitos no Brasil”, disse Carlos.

A presidente da Fundação Oswaldo Cruz registrou a importância do trabalho coordenado por Carlos Coimbra e fez um pedido. “Esta atividade, que para mim é força viva, é agora parte da agenda política da Fundação, peço que este debate possa se transformar num programa de ação da Abrasco com a Fiocruz, tanto na pesquisa quanto, e ao mesmo tempo, na proposição de ações e de políticas. Ainda que o estudo e pesquisa neste campo sejam fundamentais, este debate precisa ser propositivo. Aproveito a presença de todos vocês aqui para lembrar que dia 20 de junho está programado um encontro nosso com a Abrasco, para falarmos de nossas agendas em comum e para avaliarmos a realização do Abrascão 2018 aqui no campus. Estamos dando a esta possibilidade um sentido maior, político e de mobilização de toda a nossa comunidade” afirmou Nísia.

O diretor da Ensp/Fiocruz, Hermano Castro, que é também um dos coordenadores do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Abrasco, chamou a atenção para a perda diária dos direitos no Brasil. “Estamos perdendo direitos trabalhistas e previdenciários e a cada dia vemos aumentar os conflitos pela terra. Os massacres no campo que acontecem todos os dias, temos tantas leis e no final não temos nenhuma. Neste fim de semana a violência avançou para a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Manguinhos que foi alvo de tiros de criminosos. Mas apesar de tanto retrocesso vejo crescer o movimento nas ruas e precisamos nos unir”, pediu Hermano.

Liderança indígena

A força e a sensibilidade do testemunho de Sandra Benites, liderança indígena do povo kuikuro e estudante de mestrado do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, silenciaram o auditório. “Nasci na aldeia Porto Lindo, no Mato Grosso do Sul, onde aprendi a ler e escrever. Já casada fui morar no Espírito Santo e cursei o Magistério Indígena na Universidade Federal de Santa Catarina. Hoje moro no Rio e faço o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. Mas não vim falar da minha trajetória, vim aqui para contar a todos vocês que nunca deixamos de sofrer violência no Brasil, embora ela seja invisível para vocês, juruá. Hoje temos acesso às tecnologias que servem para fazermos denúncias e colocar a sociedade para questionar. Mas a sociedade brasileira não nos conhece e é tudo muito angustiante porque todas as coisas se fecham apara nós, indígenas, quando abraçamos alguma causa acabamos por viver aquilo. Para mim não estamos falando hoje de retrocesso, a violência sempre aconteceu e agora está transbordando”, lamentou Sandra.

A mestranda chamou atenção para a violência com todos os brasileiros que têm uma relação mais próxima com a terra. “Indígenas ou não-indígenas, mesmo entre nós, de etnias diferentes, a única coisa que temos em comum é: precisamos de terra para viver. Minha dissertação fala sobre o fundamento da pessoa guarani e do nosso bem-estar futuro Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ e mesmo que vivamos hoje de maneira caótica, temos um espaço demarcado, mas querem acabar com o que resta. Vocês conseguem imaginar alguém demolindo a casa ou o apartamento de vocês, ficarem na rua e não poderem fazer absolutamente nada a respeito? Estou aqui para pedir que vocês, pesquisadores juruá, pensem no genocídio que estamos sofrendo frente ao aparato do agronegócio e nos ajudem com a demarcação das terras indígenas no Brasil”, pediu Sandra.

A pesquisadora Edinilsa Ramos de Souza, do Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e Saúde Jorge Carelli (Claves/Fiocruz) e Carlos Coimbra finalizaram o debate. Edinilsa trouxe para a questão os dados epidemiológicos que mostram a vulnerabilidade e a violência que sofrem os indígenas. “Nossos dados comprovam que a violência está crescendo e junto com ela o número de mortalidade em decorrência desta violência. O descaso com a questão indígena é a principal causa da violência no campo. Como proposição, queria deixar registrada a importância da melhora nesses sistemas de informação de violência, que pudessem ser mais fidedignas e menos sub-registradas, que mostrassem verdadeiramente o que está acontecendo com cada etnia e que esclarecesse melhor a causa”, disse Edinilsa.

“As palavras da Sandra não me saem da cabeça”, concluiu Carlos Coimbra fechando o debate. “Uma coisa é você estudar a situação da violência indígena, outra é você viver esta violência. Sandra, só posso desejar que, nas gerações futuras, este tipo de relato não seja mais ouvido. Os fazendeiros não estão de brincadeira e estão muito fortalecidos. Hoje, no Brasil, matar um índio é uma coisa menor e esse país me envergonha”, lamentou Carlos.

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