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25/01/2008

Desafio: metodologia de Primeiro Mundo para um país em desenvolvimento

Bel Levy


Isolar o HIV-1 no Brasil significou implantar, em um país em desenvolvimento, técnicas já amplamente utilizadas por países desenvolvidos. Um desafio que exigia, além de infra-estrutura laboratorial e financiamento, recursos humanos de alta qualidade. Formar uma equipe multidisciplinar composta por especialistas e estudantes envolvidos em diferentes áreas do conhecimento e dotados de habilidades distintas foi a estratégia adotada pelo imunologista Bernardo Galvão. Entre os componentes deste time estavam virologistas, imunologistas e bioquímicos que hoje integram o mais alto escalão da ciência brasileira e acumulam reconhecimento internacional.


Para ter acesso aos detalhes da metodologia necessária ao isolamento do HIV-1, a bioquímica Vera Bongertz, pesquisadora do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC, viajou à França para acompanhar de perto as atividades do Laboratório de Oncologia Viral do Instituto Pasteur – primeiro no mundo a isolar o vírus da Aids. “A partir de meu estágio no Instituto Pasteur, pude trazer ao Brasil conhecimentos sobre a cinética de replicação viral e as concentrações celulares ideais para experimentos relacionados ao isolamento, além de amostras de um reagente que auxilia a fixação do HIV-1 em linfócitos hospedeiros, o Polybrene. Trouxe também uma técnica para a produção de antígenos para uso em Western Blot, técnica empregada para diagnóstico da infecção, que devido ao alto custo foi substituída pela imunofluorescência – método diagnóstico rotineiramente utilizado por laboratórios brasileiros”, conta Vera.


Reunidos os recursos humanos e tecnológicos, a equipe de Galvão finalmente deu início aos estudos que levaram ao isolamento do HIV-1 no Brasil, tendo como base as amostras cedidas pelos virologistas Hélio e Peggy Pereira. O primeiro desafio consistia em cultivar o vírus em laboratório. “Para acompanhar em laboratório o processo de infecção de células saudáveis pelo HIV-1, empregamos um procedimento conhecido como co-cultivo celular, que consiste em misturar e cultivar células de indivíduos saudáveis e células infectadas pelo HIV-1, coletadas de pacientes. Após infectar as células saudáveis, o HIV-1 se replica de forma abundante, processo que pode ser acompanhado em laboratório pela observação de efeitos citopáticos, da medida de proteínas do HIV-1 no meio de cultura, da detecção de antígenos virais por imunofluorescência ou pela visualização do próprio vírus por  microscopia eletrônica, por exemplo. Como eu utilizava diversos procedimentos de cultura de células em meu doutorado sobre a relação parsito-hospedeiro na Paracoccidioidomicose [infecção pelo fungo Paraccoccidioides brasiliensis], pude trazer esta contribuição à equipe coordenada por Galvão”, descreve o imunologista Dumith Chequer Bou-Habib, pesquisador do Laboratório de Imunologia Clínica do IOC.


Implantada a técnica do co-cultivo celular, os pesquisadores precisavam comprovar cientificamente a presença do vírus no meio de cultura, pela identificação in vitro da replicação viral. A técnica internacionalmente utilizada para isto, a detecção da enzima transcriptase reversa – que caracteriza o HIV-1 por transcrever o RNA viral em DNA, permitindo sua replicação – não estava disponível no Brasil e, mais uma vez, o desafio foi vencido em um episódio bastante singular.


“A partir de amostras clínicas de pacientes, nós isolávamos linfócitos infectados pelo HIV-1, cultivávamos em co-cultura com células saudáveis, que eram então infectadas, mas não conseguíamos confirmar a presença do vírus nem sua replicação. Encontramos a peça final deste quebra-cabeça quando Carlos Morel, então pesquisador do IOC e atual diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz, entrou em nosso laboratório com antígenos virais trazidos dos Estados Unidos. Aplicamos os antígenos ao co-cultivo e o reconhecimento deste material pelos anticorpos produzidos pelas células de defesa presentes no experimento confirmaram finalmente a presença do HIV-1 na cultura celular”, descreve Galvão.


A notícia do isolamento do vírus da Aids na América Latina foi oficializada em 1987 com a publicação do artigo científico Isolation and antigenic characterization of human immunodeficiency vírus in Brazil na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Vinte anos depois, a Fiocruz continua em destaque no cenário internacional de pesquisa científica em HIV/Aids. Segundo o Institute for Scientific Information (ISI), órgão internacional responsável por avaliar a relevância de periódicos científicos indexados, quatro pesquisadores da Fundação estão entre os 15 autores residentes na América Latina e Caribe mais citados em artigos sobre o tema entre 2001 e 2005: Mariza Morgado e Vera Bongertz (IOC), Bernardo Galvão (CPqGM) e Francisco Bastos (Icict). Este reconhecimento resulta da combinação entre tecnologias de ponta, investimento financeiro e recursos humanos especializados – fatores diretamente influenciados pelo isolamento do vírus no Brasil, que gerou também a publicação de uma série de trabalhos pioneiros, que incluem a descrição biológica e molecular e a caracterização da variabilidade genética e antigênica dos vírus circulante no país.

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