Início do conteúdo

01/06/2011

Desafios em relação ao acesso estarão na base das discussões da 14ª CNS

Raquel Torres


As imagens são comuns a muitas reportagens apresentadas na imprensa sobre os problemas do Sistema Único de Saúde: enormes filas para conseguir atendimento, espera nos corredores de hospitais, pessoas que aguardam meses para conseguir fazer exames e outros exemplos de dificuldade no acesso aos serviços são constantes. O reconhecimento desse problema e a busca por soluções vão nortear a 14ª Conferência Nacional de Saúde, que será promovida em novembro deste ano. Com o tema Todos usam o SUS! SUS na seguridade social, política pública, patrimônio do povo brasileiro, a conferência terá Acesso e acolhimento com qualidade: um desafio para o SUS como eixo para as discussões.



Na verdade, todo mundo é, de uma forma ou de outra, usuário do SUS. O alcance das campanhas de vacinação e a distribuição gratuita de medicamentos para doenças crônicas talvez sejam alguns dos maiores exemplos disso. Mas e na hora de agendar consultas com especialistas ou exames, será que o acesso se dá satisfatoriamente? Será que todo mundo consegue ser bem atendido - e pelos profissionais adequados - quando procura uma unidade de saúde? E de que forma as barreiras encontradas pela população nesse processo interferem no princípio da universalidade do sistema? "A universalidade implicaria que qualquer pessoa, a qualquer momento, frente a uma necessidade, independentemente da sua condição de pagar, teria o cuidado de que necessita", define a pesquisadora Cláudia Travassos, do Instituto de Comunicação de Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). E, de acordo com ela, essa ainda não é a realidade no Brasil.


Apesar disso, o percentual da população que usa serviços públicos de saúde vem aumentando consideravelmente. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE) tem aplicado, a cada cinco anos, um questionário suplementar sobre saúde que permite observar essas mudanças. Segundo a pesquisa, entre 1998 e 2008 cresceu de 41,8 para 56,8 o percentual de pessoas entrevistadas que afirmaram usar regularmente postos ou centros de saúde. A Pnad traz ainda outro dado importante: no mesmo período, houve um crescimento de 49% para 56% no número de atendimentos e internações realizados pelo SUS.


Tipos de acesso


Mas "entrar" no sistema usando algum serviço não significa necessariamente ter um acompanhamento continuado. Cláudia observa que, ao se discutir acesso, é preciso em primeiro lugar definir a que estamos nos referindo. "O termo sempre diz respeito à oferta. Entretanto, ele pode ser visto de mais de uma maneira. A primeira é uma forma restrita, considerando o processo que vai desde o momento em que uma pessoa decide usar um serviço de saúde até usá-lo. Esse conceito restrito, da entrada, é muito útil", explica, completando: "E existe um outro importante ponto de vista que diz não ser suficiente apenas entrar no sistema. É preciso entrar, ter o tratamento adequado, no momento correto, com o profissional certo, e ter o melhor resultado daquele acesso".


A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) Cristiani Machado considera fundamental ter esse acesso ampliado. E, para ela, um aspecto importante para garantir isso é a integração entre os serviços. "Uma pessoa pode ter acesso a um atendimento na atenção básica, mas aquele serviço precisa estar articulado a outros para garantir a continuidade: ela precisa ser encaminhada para fazer um exame, para um especialista, para fazer determinados tratamentos e assim por diante", explica.


Cristiani considera que a atenção básica é uma chave para estruturar o sistema de saúde e melhorar o acesso a outros níveis de complexidade e, de acordo com ela, a Estratégia Saúde da Família (ESF) tem sido fundamental para esse fortalecimento. O Ministério da Saúde calculava, em 2003, que 35,7% da população brasileira era atendida pelo então chamado Programa Saúde da Família (PSF). Em 2008, o IBGE mostrou um aumento considerável nesse percentual: 47,7% dos domicílios que participaram da Pnad declararam estar cadastrados na ESF.


Mas, para realmente garantir o fortalecimento do sistema, é preciso assegurar a tal continuidade a que Cristiani se refere. Um elemento positivo nesse sentido, de acordo com ela, é a implementação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), criados em 2008. Enquanto as equipes de saúde da família são compostas por médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde, podendo contar também com dentistas, os Nasf têm outros tipos de profissionais, como assistentes sociais, fisioterapeutas, ginecologistas, pediatras e psicólogos. "Eles podem ajudar as equipes a receber melhor pessoas com diferentes problemas. Essa iniciativa tem impacto no acesso a determinados tipos de serviços e na sua qualidade", avalia Cristiani.


Barreiras


No entanto, ela diz que é preciso reconhecer as limitações que ainda existem na organização da atenção básica. Para a pesquisadora, uma das questões fundamentais, e que nem sempre é tratada pelos municípios, é o horário de atendimento. "Quando se pretende ampliar o acesso por meio de uma atenção básica de qualidade e resolutiva, é necessário disponibilizar horários expandidos para isso. Unidades que só funcionam no horário comercial representam uma barreira, pois as pessoas trabalham e acabam adiadiando o atendimento", observa. A disponibilidade de profissionais também é importante: "Muitas vezes, as pessoas procuram um posto de saúde, por exemplo, mas o profissional não está lá ou a unidade está fechada. Em outros casos, se o usuário não for bem recebido e bem atendido, ele pode não conseguir o atendimento adequado", afirma Cristiani.


Outra questão que dificulta o acesso são as longas esperas para determinados procedimentos. E, para a pesquisadora, a falta de gerenciamento das listas de espera faz com que o problema se agrave. "Ter listas organizadas e conhecer os problemas das pessoas pode melhorar as condições de acesso. Se os usuários precisam esperar quatro meses para uma determinada consulta, o percentual de falta quando a data finalmente chegar será altíssimo - a essa altura, as pessoas já terão resolvido seus problemas de outra forma. E, muitas vezes, a unidade não consegue colocar outras pessoas para serem atendidas no lugar das ausentes", aponta Cristiani.


Cláudia concorda: "É difícil imaginar um sistema absolutamente destituído das filas. O problema é que às vezes sequer temos as filas devido ao alto grau de desorganização. Quando se sabe quantas pessoas precisam de determinada cirurgia, é porque elas já foram ao médico, ele já fez a indicação e elas entraram em uma fila organizada para serem atendidas de acordo com suas necessidades. Esse é o processo correto. É diferente de a gestante que está parindo ser ‘empurrada' de uma maternidade para a outra porque não há como ser atendida. Isso não é fila, é desorganização".


Sobrecarga


Barreiras como as descritas acima dificultam a entrada no sistema e acabam congestionando as emergências, onde a questão do acesso aparenta ser mais grave. No entanto, Cláudia chama a atenção para o fato de que essa sobrecarga é apenas uma consequência de problemas anteriores no acesso: "Quanto maior a proporção de casos não emergenciais atendidos nesses locais, mais forte é o indicativo de problemas de acesso nos locais corretos - na atenção básica ou em especialistas, por exemplo", diz. Cristiani concorda: "Se uma pessoa procura uma unidade de saúde da família, por exemplo, e ela está fechada ou sem profissionais, ou ainda se ela só consegue marcar uma consulta para dali a três meses, é claro que vai acabar indo a uma emergência ou a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA)", diz.


Assim, nem sempre uma pessoa chega ao sistema pela atenção básica, embora essa deva ser a porta de entrada preferencial. Se alguém não costuma ter acesso a serviços de saúde e, de repente, em um momento de crise, precisa ir a uma UPA ou uma emergência, como deve ser o acolhimento para que essa pessoa entre e permaneça no sistema? "Os profissionais desses locais não devem apenas solucionar o problema imediato, mas também encaminhar aquela pessoa para que ela seja acompanhada. Nosso objetivo é ter uma atenção básica de qualidade e que seja a porta de entrada preferencial do sistema, mas qualquer ponto da rede tem que estar preparado para servir como porta de entrada e como facilitadora do acesso", diz Cristiani.


Cláudia lembra que esses problemas, especialmente as filas, não são exclusividade do sistema brasileiro: "Sempre que há sistemas que se pretendem universais, essas questões aparecem", observa. Mesmo em países com sistemas antigos e desenvolvidos, como Canadá e Inglaterra, os tempos de espera são longos. Cristiani aponta que, nesses países, a gestão de listas e o estabelecimento de horários flexíveis têm sido apontados na literatura internacional como medidas importantes. "Além disso, a organização da atenção primária também é fundamental. Na Inglaterra, em que procuramos nos inspirar, há médicos generalistas responsáveis por populaçõesespecíficas que mediam a integração com outros serviços", diz.


Publicado em 31/5/2011.

Voltar ao topo Voltar