16/10/2015
César Guerra Chevrand e Renata Moehlecke
Repensar os desastres naturais como fenômenos sociais e políticos, construídos a partir da ação do homem, foi o desafio da mesa-redonda Formações sócio-históricas e ambientais, que abriu o primeiro dia de debates do seminário Desnaturalização dos desastres e mobilização comunitária: novo regime de produção do saber, realizado no Museu da Vida, no campus da Fundação Oswaldo Cruz em Manguinhos, no Rio de Janeiro.
A mesa-redonda 'Formações sócio-históricas e ambientais' abriu o primeiro dia de debates do seminário (foto: Virgínia Damas, Ensp/Fiocruz)
Com a moderação de Carlos Machado, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), a mesa-redonda contou com a participação do coordenador da Rede de Pesquisa sobre Governabilidade e da Cidadania na Gestão da Água e da Saúde Ambiental na América Latina (Waterlat), José Esteban Castro, do professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Héctor Alimonda e do professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra João Arriscado Nunes.
Na abertura dos debates, Esteban Castro apontou a contradição entre o crescente nível de autonomia da América Latina nos últimos 15 anos, com a reorientação dos enfoques de suas políticas públicas, e a permanência da desigualdade e da injustiça sócio-ecológica no continente. “A história da América Latina é marcada pela construção de uma relação entre os seres humanos e a natureza de caráter extremamente destrutivo, baseada na produção de desigualdades estruturais históricas consolidadas”, destacou.
Esteban Castro apontou a contradição entre o crescente nível de autonomia da América Latina nos últimos 15 anos e a permanência da desigualdade e da injustiça sócio-ecológica no continente (foto: Virgínia Damas)
Especialista em gestão da água e da saúde ambiental, Esteban Castro afirmou que, apesar dos avanços dos governos progressistas da última década, a problemática da desigualdade e da injustiça ambiental ainda não tem espaço no debate sobre a democratização e o meio ambiente. “Na América Latina, nós temos uma longa tradição de estudos sobre o problema do desenvolvimento, mas a temática ambiental tem sido excluída sistematicamente”, disse Esteban, que citou o economista Celso Furtado (1920-2004) como um dos únicos intelectuais que confrontou o problema da seca no Brasil.
Para ilustrar o tema e avançar na problematização dos desastres naturais, o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Héctor Alimonda citou o caso da cidade de Santiago de los Caballeros, na Guatemala, fundada em um vale ao pé de três vulcões em 1495, no início da conquista espanhola nas Américas. “Toda a história de Santiago de los Caballeros é marcada por tragédias naturais. Apesar disso, ela chegou a ser a terceira maior cidade espanhola nas Américas, com mais de 60 mil habitantes no século 17. É uma narrativa histórica impressionante sobre a persistência de uma população que se nega a deixar a sua cidade”, afirmou Héctor Alimonda.
Para ilustrar o tema e avançar na problematização dos desastres naturais, o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Héctor Alimonda citou o caso da cidade de Santiago de los Caballeros, na Guatemala (foto: Virgínia Damas, Ensp/Fiocruz)
De acordo com o especialista em Ecologia Política e História Ambiental, a sucessão de catástrofes fez com que a Corte espanhola sugerisse a mudança de local da cidade, mas os descendentes dos conquistadores resistiram ao máximo. Outra cidade seria fundada em 1776, oferecendo mais segurança, mas a antiga Santiago de los Caballeros nunca foi completamente abandonada. “Hoje a cidade é um tesouro colonial, típico do século 18, uma atração turística. Em 1979, foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco”, completou Alimonda.
Refletindo sobre as múltiplas dimensões do que se chama simplesmente de “desastre natural”, o professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra João Arriscado Nunes citou os incêndios florestais que são comuns em Portugal. “Não existe propriamente um desastre natural. Em diferentes momentos, existem sempre intervenções humanas, ou de organizações ou de fatores sociais que levam a uma catástrofe”, apontou Arriscado. Segundo o professor, além da falta de estrutura de emergência que mata muitos bombeiros portugueses no combate a incêndios florestais, ainda são significativos os casos de incêndios criminosos e planejados por proprietários de terra.
“Não existe propriamente um desastre natural. Em diferentes momentos, existem sempre intervenções humanas, ou de organizações ou de fatores sociais que levam a uma catástrofe”, apontou Arriscado (foto: Virgínia Damas, Ensp/Fiocruz)
No campo da saúde, as situações de desastre, como poderiam ser classificadas urgências sanitárias como as epidemias, também variam segundo condições sociais, políticas e econômicas. João Arriscado Nunes explica que a crise do vírus ebola na África é um ótimo exemplo para entender por que alguns países foram mais afetados do que outros. “As questões epidemiológicas não explicavam a distribuição da doença. O que diferenciou esses países foi a existência de um sistema público de saúde, que garante uma primeira linha de cuidado aos pacientes e permite uma capacidade de resposta mais imediata”, disse.
Segundo mesa aborda implicações globais e territoriais de desastres
“Usamos o tempo todo a expressão desastre natural. Não há nada de natural no desastre. É fundamental não colocarmos o desastre como algo vinculado a um ato da natureza, mas sim como socialmente construído”, afirmou o pesquisador Allan Lavell, da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais, em um depoimento em vídeo que abriu a mesa-redonda Desastres: implicações globais e territoriais. A pedido do moderador da mesa e pesquisador da Fiocruz Sergio Portella, Lavell, que é um dos responsáveis pelo novo Marco de Sendai, comentou a expressão ‘desnaturalização de desastre’. “Ligar a palavra natural à desastre desvincula o acontecimento da participação humana”. Confira a apresentação na íntegra:
Para abordar a mesma expressão, a primeira palestrante da mesa, a pesquisadora Claudia Natenzon, da Universidade de Buenos Aires (UBA), abriu sua apresentação usando como exemplo a experiência do povo argentino ao analisar as inundações de 1982 e 1983. “Apesar da experiência do ano anterior, percebemos que, em 1983, a realidade não havia mudado em nada. Era preciso reconhecer a ação do homem e ver as inundações como uma consequência das nossas próprias atividades. A catástrofe não é algo extraordinário, é comum, produzida política e historicamente”, esclareceu. “Essa percepção nos fez ver que a catástrofe ainda não é problematizada de verdade”.
Segundo Natenzon, a vulnerabilidade social tem que ser vista de outra forma. “Vulneráveis somos todos. Temos que perceber é até que ponto cada um de nós é vulnerável para que a vulnerabilidade coletiva possa diminuir e realmente haja um esforço preventivo”, destacou. Para a pesquisadora, a prevenção dependeria de uma antecipação de questões que levem a tomada de decisões estratégicas, considerando uma sociedade heterogênea. “Como cientista social, estou segura que é possível antecipar e prevenir. Esse conhecimento de como atuar precisa ser compartilhado e construído em conjunto”, disse.
Em seguida, Juan Claudio Salazar, consultor em Gestão de Risco de Desastres e Redes do Chile, apontou que a experiência em seu país demonstrou a necessidade de uma coordenação organizada e efetiva de ações dentre os vários atores envolvidos em um desastre, sobretudo, no que se trata do governo e de suas diversas instâncias. “Uma das principais ameaças a resposta humanitária é a falta de competência dos organismos. Uma experiência ruim nesse sentido pode levar a uma catástrofe extra”, ressaltou.
Da mesma forma que Lavell e Natenzon, Salazar reforçou a necessidade de desnaturalização do desastre. “A natureza em si não é catastrófica: um terremoto ou uma chuva não são ruins, são apenas eventos”, explicou. “O desastre provocamos nós”. Salazar ainda destacou que é preciso aprender a conviver com a natureza. “Temos que trocar a cultura da reação pela de prevenção; entender que a reação custa muito mais ao país”, disse.
O pesquisador também chamou atenção sobre como o mundo empresarial tem lidado com catástrofes. “Um dos grandes problemas é o quanto algumas empresas tem lucrado com esses eventos. Isso precisa mudar”, alertou. Ele também comentou que a realidade da globalização não pode ser ignorada. “O que afeta alguns, na verdade, afeta a todos nós. Por isso as experiências e os saberes devem ser compartilhados”, concluiu.