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29/04/2011

Diretora de 'Sangue ruim' destaca resgate da cidadania em teatro com conteúdo científico

Haendel Gomes


Em cartaz no Museu da Vida da Fiocruz, a peça Sangue ruim une técnica dramática a temas científicos para narrar a polêmica em torno das pesquisas com seres humanos. Limite da ética para o desenvolvimento da ciência, o problema da discriminação social e racial, a influência dos países ricos sobre nações em desenvolvimento e dilemas pessoais são narrados nessa montagem no espaço Ciência em Cena. Nessa entrevista, a diretora Wanda Hamilton fala de sua trajetória na Fiocruz, do prazer ao adaptar o texto de Paul Sirett, das reações dos estudantes nos debates promovidos após o espetáculo, das fontes da Fundação procuradas para o apoio ao tratamento do tema narrado pela peça, bem como do trabalho conjunto necessário para desenvolver a montagem, entre outras questões. Segundo ela, o texto trata da questão ética, mas o foco principal é a pesquisa científica.


 Wanda: o grande tema da peça são as questões éticas que envolvem a pesquisa com seres humanos

Wanda: o grande tema da peça são as questões éticas que envolvem a pesquisa com seres humanos


Pode falar um pouco sobre a experiência de trabalhar a dramaturgia com a visão da saúde, da ciência e de sua história? Quando começou a pensar em seguir esse caminho teatral, apropriando-se dessa ferramenta para mexer com o público?


Wanda Hamilton: Eu trabalho na Fiocruz na pesquisa em história da ciência e da saúde há muito tempo. Tenho formação em ciências sociais e também em teatro. Hoje estou conseguindo fazer uma atividade que junta dois lados de uma moeda: a formação de teatro e das ciências sociais. O Ciência em Cena daqui a pouco faz 15 anos. Já tem uma história de encenações teatrais com temas científicos para discutir com o público; temas de ciência e história, e personagens. Existe na instituição uma área onde eu podia juntar essas duas vertentes profissionais. E aqui estou. Há pouco mais de um ano a Luísa [Massarani, chefe do departamento Museu da Vida] me convidou para desenvolver projetos aqui no Museu. Eu era do Departamento de Pesquisa da Casa [COC]. Hoje estou tendo esse privilégio de trabalhar com teatro, ciências sociais, história e biologia, fazendo uma síntese.


No ano passado, estreou Pergunte a Wallace porque tinha a exposição dos viajantes aqui. Agora, com Sangue ruim, aprendemos sobre ética, sobre ensaios clínicos, sobre Aids. O trabalho de teatro é fascinante neste sentido. É também um trabalho de pesquisa. Cada espetáculo que você monta, por trás, tem uma pesquisa enorme. Não só de conteúdo, porque estamos numa instituição científica e o texto tem conteúdo científico, mas pesquisa de personagem, de figurino, de luz; quem são, como seriam e como podem ser os dois personagens [Claire e Patrice]? Esse trabalho de teatro também é um trabalho de pesquisa. O que a gente está fazendo é reunir arte e ciência.


No filme O jardineiro fiel, de Fernando Meirelles, um diplomata cujo hobby era cuidar de suas plantas, acaba entrando em uma cruzada contra os laboratórios farmacêuticos, depois de saber que sua mulher, uma ativista, havia morrido em um lugar isolado por investigar testes de um novo medicamento em seres humanos na África. O filme teve grande sucesso e levantou a discussão ética do tema no mundo. A peça também tem esse objetivo com sua linguagem própria para debater os limites éticos do uso de seres humanos em pesquisas?


Wanda: O grande tema da peça são as questões éticas que envolvem a pesquisa com seres humanos. Diferentemente do filme, o foco não são as empresas. Elas aparecem, mas o foco é a pesquisa, desenvolvida nos institutos de pesquisa, e como essas pesquisas, em algum momento, geraram polêmicas. A peça mostra um fato verídico. Na África, grupos de pesquisa decidiram testar alternativas ao AZT, que era muito caro; as indústrias farmacêuticas ofereciam o medicamento por um preço altíssimo; e os países africanos não podiam pagar, tendo o maior contingente de pessoas infectadas por HIV. Os institutos encontraram aí uma brecha que, por um lado, pensavam, era uma forma de ajudar, mas por outro lado, acabavam cometendo alguns abusos atualmente considerados antiéticos, como o uso do placebo quando você já tem um tratamento comprovado para a doença. Então, o foco é a pesquisa. O contexto é perfeito para discutir essa questão: qual é o papel do pesquisador e das instituições de pesquisa nessa relação com seres humanos que se dispõem a participar de testes de medicamentos ou de outro tipo de pesquisa científica?


Qual foi a sua preocupação ao adaptar a peça à nossa realidade?


Wanda: Quando li a peça, gostei muito do texto. Um texto inglês de autoria de Paul Sirett, de uma companhia britânica, a Theatrescience, que faz teatro com conteúdo científico. É situada na África e tem uma pesquisadora inglesa que conhece um jovem africano. O contraponto entre esses dois personagens é o mote da peça. No começo, a gente pensou: vamos adaptar para o Brasil, com uma pesquisadora inglesa fazendo pesquisa no Brasil? Vimos que não dá para adaptar para o Brasil por algumas razões. Principalmente porque temos um programa de Aids que funciona, é bom e referência internacional. Então todas as pessoas que são portadoras de HIV têm acesso a tratamento, aos medicamentos que o Ministério da Saúde fornece, e aos testes, que são gratuitos. Então, nesse aspecto particular, a pesquisa se aproveita da carência muito grande no continente africano em relação a políticas públicas para Aids e pessoas portadoras de HIV. Por isso decidimos manter na África, mas com adaptações. A peça é em inglês. Um jovem africano, de um país francófono [em que se fala francês] pede para estudar inglês. Então a gente teve que fazer uma brincadeira no começo para o público entender que o português é o inglês. A pesquisadora pergunta ao personagem em francês, e ele responde que prefere que ela fale em inglês. Teatro é código. Tivemos que fazer algumas outras alterações para o público jovem, já que é uma peça muito adulta, mas não mexemos muito no texto.


Temas como as diferenças culturais e sociais, de valores éticos, limites da pesquisa científica são desenvolvidos no texto. Como observa a identificação do público com esses temas?


Wanda: A peça estreou no dia primeiro de abril e temos visto que os jovens entendem rapidamente essas questões. Tem uma identidade muito grande com o Patrice porque é um jovem e estudante como eles [da plateia]. O que a gente tem trabalhado mais nos debates é chamar atenção para a questão ética, ou seja, testes com seres humanos. Muitos deles não sabem que em algum momento as vacinas e os medicamentos têm que ser e já foram testados em seres humanos. Já tivemos um debate de primeira qualidade! “O que é o placebo?”, “O que é um grupo de controle?” Questões baseadas em conceitos muito específicos da ciência e da metodologia de pesquisa com testes em seres humanos, testes clínicos. “Quando usar placebo e quando não usar placebo?” Porque tem situações em que é necessário, como quando se está testando um medicamento novo ou quando há uma doença que não se tem medicamento nenhum. Neste caso, como é a Aids, esse é outro tema em que eles ficam muito ligados. Querem saber, perguntar, debater a questão da Aids, como se transmite, como se trata. Enfim, são temas que surgem durante o espetáculo e que lhes chamam a atenção. Questões éticas, sobre desigualdades sociais e a Aids são temas muito fortes. 


Fale sobre as fontes utilizadas para dar suporte ao texto. Quem contribuiu para a adaptação da montagem?


Wanda: Nós estamos na Fiocruz. Aqui existe o comitê de ética, que aprova e dá seu parecer sobre as pesquisas envolvendo seres humanos. Fui até Biomanguinhos, porque lá também são desenvolvidos testes de vacinas e produtos em seres humanos. Estive no Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, que faz tratamento com pessoas com Aids. Eles também fazem pesquisas clínicas em pacientes. Estavam fazendo uma pesquisa de adesão, ou seja, pessoas que começam o tratamento e se fidelizam ao tratamento. São todas pesquisas envolvendo seres humanos e, a partir daí, fui não só conversando com esses especialistas, mas também recolhendo bibliografia. Hoje o debate sobre as questões éticas é enorme, tem institutos sobre isso. É uma área multidisciplinar, que envolve filosofia, ciências sociais, biologia, enfim, vários campos disciplinares num debate muito grande.


Como vê as potencialidades do teatro como veículo para transmitir informações científicas?


Wanda: O teatro tem um papel cultural, social e político muito forte. Na Grécia dos grandes dramaturgos que até hoje são encenados (Eurípides, Sófocles e Aristófanes), o teatro tinha uma função social, que era discutir justamente questões daquela sociedade: cidadania, questões éticas, valores. Então, o teatro na Grécia tem um papel formador e educacional muito forte. Na verdade, fazer teatro com conteúdo científico numa instituição científica é um pouco resgatar esse papel que o teatro tem.   


A senhora diz que o teatro é um trabalho em conjunto. O que esperar dessa conjugação de forças para desenvolver temas importantes da ciência, da saúde e da sociedade para o público do Museu da Vida?


Wanda: Teatro é um trabalho de equipe, totalmente. Quando esse trabalho de equipe não existe, não existe teatro. O teatro envolve um bom texto, atores, direção, alguém que pense o cenário, alguém que pense o figurino, alguém que faz a luz, quem opera, a gente tem a trilha sonora que é do próprio Paul Sirret, o autor. A gente precisou gravar, operar. Então todos esses profissionais que estão envolvidos no espetáculo, eles fazem parte, tem que colaborar para o espetáculo ser o mais bonito e o mais interessante, com qualidade. É isso que a gente quer fazer aqui.


Publicado em 29/4/2011.

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