23/11/2007
Catarina Chagas
Pensar o significado contido na construção de uma capital federal em pleno sertão sob o ponto de vista de médicos e sanitaristas foi o objetivo da dissertação de mestrado da historiadora Tamara Rangel Vieira, aluna da Casa de Oswaldo Cruz (COC), unidade da Fiocruz que se debruça sobre a história das ciências e, sobretudo, da saúde. Além de artigos da Revista Goiana de Medicina publicados entre 1955 e 1960 – ano da inauguração de Brasília –, a aluna coletou, em conjunto com as pesquisadoras da COC Dominichi Miranda de Sá e Simone Kropf, mais de dez horas de depoimentos de alguns dos primeiros médicos que trabalharam no local e que participaram ativamente dos debates que culminaram na transferência da capital.
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Edson Porto, o primeiro médico a chegar a Brasília, e a primeira ambulância da cidade |
“Na época, era aparentemente paradoxal um país que se queria moderno levar sua capital para um lugar historicamente associado a doenças”, conta Tamara, que desenvolveu o trabalho sob a orientação da pesquisadora Nísia Trindade, da COC. “Relatórios do início do século 20 apontavam o Planalto Central como uma região vítima da pobreza, do isolamento e das doenças endêmicas”. Essas impressões contrariavam os relatos da Comissão Cruls, expedição que visitou o local no final do século 19 a fim de delimitar o espaço da nova capital e descreveu a região como ideal para a construção da cidade, por causa de seu clima ameno e sua topografia pouco acidentada.
Quando o presidente Juscelino Kubitschek decidiu, em 1956, retomar a idéia de levar a capital para o Planalto Central e efetivamente construir Brasília, a atitude gerou polêmica e insatisfação entre os parlamentares e na opinião pública. A ação da elite médica de Goiás mostrou-se fundamental para que o presidente tomasse esta decisão e contribuiu para que a meta fosse concretizada. “Percebemos nos artigos da revista uma participação intensa dos médicos goianos a fim de ressaltar as vantagens da mudança da capital para Brasília”, relata a pesquisadora. “Além disso, medidas práticas foram tomadas para evitar que doenças graves se espalhassem na região, como estabelecer um exame médico minucioso para a admissão de trabalhadores. Após a consulta, cada um deles recebia uma carteira de saúde, sem a qual não podiam ser contratados”.
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Construção do Hospital Juscelino Kubitschek, em abril de 1957 |
Havia, na época, uma preocupação especial com a doença de Chagas, registrada em regiões próximas à futura capital. Também aí os médicos e sanitaristas goianos atuaram, desenvolvendo campanhas de conscientização sobre a doença e suas formas de prevenção. “Os médicos do Planalto Central, portanto, tiveram participação importantíssima na decisão de transferir a capital da república para Brasília, com papel ativo no diagnóstico da situação sanitária do local e na tomada de medidas para a manutenção da higiene”, ressalta Tamara.
Segundo a historiadora, a dimensão médico-sanitária contribuiu para viabilizar a meta mais marcante do Programa de Metas do governo Kubitschek – a transferência da capital para o Planalto Central de Goiás –, uma vez que as doenças, sobretudo as endemias rurais, eram vistas como obstáculos ao desenvolvimento pleno do país. “Com a atuação bem sucedida no saneamento do sertão, a elite médica goiana ganhou visibilidade. O retorno de seus esforços veio com a construção, ainda em 1960, da primeira faculdade de medicina em Goiás, inspirada inicialmente pela necessidade de formarem-se médicos voltados para o interior do país”, resume.
Abaixo, o relato de dois médicos goianos que trabalharam em Brasília na época da construção da cidade.
“Eu tinha um medo danado da doença de Chagas entrar em Brasília, né? Então eu botei um retrato do barbeiro. Era uma placa com um barbeiro enorme chamando a atenção. Espalhei nas construções”.(Isaac Barreto Ribeiro, 2006)
“O Centro-Oeste não tinha nenhuma faculdade de medicina. Os alunos que queriam estudar tinham que ir para São Paulo ou Rio. As famílias de menos recursos não tinham condições. Isso foi a primeira motivação. A segunda motivação: a população em expansão, crescendo muito e os médicos que trabalhavam todos tinham que vir do Rio, de São Paulo, de Belo Horizonte ou da Bahia. O número de médicos era muito deficiente. O Estado de Goiás tinha, nessa época, mais ou menos 130 municípios sem médicos. Então era uma imposição histórica, só que não havia uma decisão política. A Associação Médica lutou desde 1951 até 1960 para conseguir fundar essa faculdade. E ela só saiu porque foi governador José Ludovico de Almeida, no tempo de Juscelino”. (Joffre Marcondes de Rezende, 2001)