Início do conteúdo

07/01/2008

Dissertação inovadora discute saúde e eqüidade na Venezuela


Com a defesa de uma dissertação considerada original e acima das exigências pela banca examinadora, que recomendou a imediata publicação do trabalho, a venezuelana Henny Luz Heredia Martinez encerrou seu curso de mestrado em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz. Henny, que é professora-pesquisadora do Instituto de Altos Estudos de Saúde Pública Dr. Arnoldo Gabaldon (Iaesp), utilizou sua experiência acadêmica e profissional, de assessoria técnica a diferentes estados e municípios venezuelanos – nas áreas de análise dos sistemas de informação em saúde, caracterização da rede de estabelecimentos de saúde e planejamento estratégico situacional, entre outros –, para discutir a questão da saúde e eqüidade na Venezuela, a partir da abordagem comunicativa do Planejamento Estratégico Situacional (PES), do chileno Carlos Matus. Em entrevista ao Informe Ensp, Henny Luz traça um panorama da saúde em seu país, fala sobre as mudanças e as expectativas trazidas pela Misión Barrio Adentro e adianta seus planos para o doutorado.


 Henny: o SUS é referência para a construção de um sistema similar no país vizinho (Foto: Virginia Damas)

Henny: o SUS é referência para a construção de um sistema similar no país vizinho (Foto: Virginia Damas)


O que motivou a escolha de cursar o mestrado e o doutorado na Ensp?

Henny Luz:
O processo de reforma sanitária no Brasil é um dos mais destacados da América Latina e tem servido de referência para a construção do Sistema Público Nacional de Saúde (SPNS) na Venezuela. Nesse sentido, a Ensp, além de ser uma escola de reconhecido mérito internacional, pela sua trajetória no desenvolvimento da docência e pesquisa em saúde, sempre teve uma ampla participação no processo da reforma sanitária brasileira. Isso me permitiu contrastar a experiência brasileira das reformas sanitárias obtidas até agora no SUS, com as estratégias que atualmente se desenvolvem na Venezuela para a consolidação do SPNS. Fora isso, a Ensp conta com prestigiados pesquisadores na minha área de desenvolvimento e tem convênio com o Iaesp, que é vinculado ao Ministério do Poder Popular para a Saúde da Venezuela e encarregado da formação de recursos humanos desse ministério.


Quais as principais mudanças ocorridas na área da saúde na Venezuela nos últimos anos?

Henny:
O SPNS está em processo de consolidação, as últimas mudanças estão direcionadas à integração das diferentes instituições prestadoras de serviços de saúde, com a finalidade de dar um atendimento oportuno, de qualidade e de forma eqüitativa a toda a população. Numa breve cronologia, podemos dizer que a partir de 1998 várias medidas foram tomadas para garantir o direito à saúde a todos os venezuelanos, sendo a primeira delas a implementação do modelo de atenção integral cujos objetivos eram reorganizar a atenção médica em seus três níveis e em suas relações, desde o interior das instituições existentes e com os trabalhadores da saúde; desenvolver a história clínica unificada e o Sistema de Informação do Modelo de Atenção Integral (Sismai); e eliminar a cobrança em ambulatórios e hospitais públicos, paralisando, em parte, o processo de privatização da saúde que vinha se desenrolando.


Em 2000 começou a ser desenvolvido o Plano Bolívar, de cooperação cívico-militar, que buscava aumentar o acesso da população às ações de atenção à saúde, desde as preventivas, como as vacinações gratuitas, às intervenções cirúrgicas. Em 2002, para aprofundar a política de saúde, considerando-a como o desenvolvimento humano integral, é desenhado o Plano Estratégico Social, que permitiu avançar na concepção do sistema de saúde. A idéia era partir das necessidades da população, decorrentes do não cumprimento dos direitos consagrados na Constituição, cujo enfrentamento exigia um esforço intersetorial e social. Em 2003, como experiência piloto nos municípios Libertador (de Caracas) e Sucre (do Estado Miranda) e tendo como antecedente o trabalho efetuado pelos médicos cubanos e venezuelanos na tragédia do desastre natural do Estado Vargas, é criada a Misión Barrio Adentro, como eixo articulador das políticas sociais e base fundamental do SPNS.


Pode falar um pouco sobre a Misión Barrio Adentro?

Henny:
A iniciativa, que inicialmente se chamava Plan Barrio Adentro e foi desenvolvida por médicos cubanos que viviam nas comunidades e prestavam atenção primária em saúde à população, não surgiu como política oficial, mas como resposta da Prefeitura de Caracas e das comunidades organizadas de uma das zonas mais empobrecidas do país. Transformada posteriormente em Misión Barrio Adentro, passa a ser aplicada nacionalmente e estabelece a construção e consolidação do SPNS conformado por uma rede de atenção com três níveis: o primeiro, no qual estão os consultórios populares e ambulatórios existentes, tanto do Ministério do Poder Popular para a Saúde da Venezuela, como do Instituto Venezuelano dos Seguros Sociais, é considerado a porta de entrada principal do sistema; o segundo, formado pelos Centros de Diagnóstico Integral (CDI), Centros de Alta Tecnologia (CAT), Salas de Reabilitação Integral (SRI) e Clínicas Populares (CP), será dotado de capacidade resolutiva para o diagnóstico e tratamento ambulatorial especializado; e o terceiro, formado pelos hospitais do povo e hospitais especializados, caracteriza-se pela capacidade de internação, diagnóstico, tratamento e reabilitação.


Que tipo de paralelo se pode traçar entre o SUS e o SPNS venezuelano. Quais as grandes vitórias conquistadas e quais os desafios que ainda precisam ser superados?

Henny:
As diretrizes do SUS – na teoria – são similares às do SPNS. Na Venezuela, também está se tentando consolidar um sistema nacional de saúde que desenvolva ações integradas, universais e eqüitativas. A Misión Barrio Adentro permitiu avançar nessa direção, ampliando a cobertura nas localidades mais carentes. O grande desafio é lograr a integração dos diferentes entes prestadores de serviços de saúde, para isso, a aprovação da Lei de Saúde e do SPNS é de vital importância.


Até agora houve avanços na construção e abertura de novos serviços, bem como na melhoria de estabelecimentos existentes. Isso melhorou o problema da cobertura, aumentou o acesso a medicamentos e a recursos de alta tecnologia por parte da população menos favorecida. No entanto, ainda existem amplos estratos da população que carecem de acesso à saúde ou que têm um acesso muito restrito. Apesar, da quantidade de recursos destinados para o funcionamento do sistema, ainda persiste a fragmentação dos serviços e do financiamento, o que acaba gerando grandes conflitos na gestão e prestação dos cuidados.


A sua dissertação teve como título Abordagem comunicativa do planejamento estratégico situacional no nível local: saúde e eqüidade na Venezuela. O que é exatamente o PES?

Henny:
O planejamento estratégico situacional (PES) surge na América Latina em 1970, tendo sido desenvolvido por Carlos Matus, ministro da Economia no governo de Allende (1970-1973). O PES, desenhado para servir aos dirigentes políticos, é um método de planejamento de alta potência que, por considerar múltiplas dimensões – política, econômica, social, entre outras – e diversos atores em situação de poder compartilhado, é capaz de processar problemas mal estruturados e complexos. Nessa concepção, a idéia é que os problemas são gerados socialmente, uma vez que a realidade é uma construção social histórica. Apesar de ter sido concebido originalmente para trabalhar no nível central, o PES pode ser aplicado em outros níveis – regional, municipal ou local – como já observaram alguns pesquisadores brasileiros, dentre eles, uma de minhas orientadoras, Elizabeth Artmann, em tese defendida na Ensp em 1993. Na minha pesquisa, eu priorizei o nível local.


Na Venezuela, diversas estratégias que buscam operacionalizar a eqüidade em saúde estão sendo desenvolvidas como resposta ao marco legal vigente. Evidentemente, o planejamento em saúde tem um papel fundamental na implementação dessas estratégias. O esforço tem sido orientado para desenvolver um pensamento estratégico nos diferentes níveis de poder. A vantagem do PES é que, mesmo aplicado no nível local, não se perde a relação dos problemas com os demais níveis. Além disso, sobretudo em saúde, são necessários métodos potentes para dar conta da complexidade, mesmo no nível local. Tal pensamento deve proporcionar uma nova valorização e direcionalidade às políticas públicas e, ao mesmo tempo, funcionar como eixo orientador de objetivos, processos e recursos, com o propósito de buscar viabilidade e capacidade de governo para enfrentar os desafios da transformação da realidade social venezuelana. Nesse sentido, a pesquisa comprovou que o PES no nível local em saúde é uma ferramenta potencial para desenvolver esse pensamento estratégico, cujo fim último é contribuir para se ter uma sociedade mais justa e eqüitativa.


De que forma a abordagem comunicativa do PES pode contribuir para o fortalecimento do sistema de saúde de seu país e para a redução das iniqüidades sociais?

Henny:
A abordagem comunicativa do PES, característica da escola de planejamento da Ensp, contribui na potencialização do uso da informação que se produz nos diferentes serviços da rede de saúde e no aumento da governabilidade dos atores que investem em negociação cooperativa, o que não só serve para o setor saúde, mas também para desenhar e avaliar as políticas de outros setores – educação, nutrição e ambiente, entre outros. A incorporação da categoria eqüidade, ao enfoque do PES, a partir de trabalho de Silvia Porto, também orientadora da minha dissertação, foi considerada inovadora pela banca examinadora. Ela permite estimar o impacto que as políticas sociais têm de promover a eqüidade, ou seja, de fortalecer a igualdade de oportunidades em saúde para os que apresentam menores capacidades de funcionamento.


Além disso, o PES, como método para governar e como ferramenta para o processo de gestão dos estabelecimentos de saúde, ao incorporar explicitamente a categoria eqüidade, permite mudar a forma de olhar a realidade e evitar a reprodução e aprofundamento das iniqüidades existentes no SPNS venezuelano. Isso porque ele exige a ativação do sistema de petição e prestação de contas, assim como, a integração e funcionamento dos diversos sistemas de informação e planejamento, através dos quais se produzirá a informação necessária para apoiar a tomada de decisões na gestão em saúde.


Acredita que esse tipo de estratégia e de abordagem podem ser aplicadas em países de realidade social semelhante à da Venezuela e do Brasil?

Henny:
É possível sim aplicar o PES no nível local em países com contextos semelhantes ao venezuelano. De fato existem algumas experiências no Brasil, na Colômbia e no Chile, desenvolvidas a partir do enfoque de Carlos Matus.


Qual a sua expectativa para o doutorado? A sua pesquisa continua na mesma linha?

Henny:
Para o doutorado eu pretendo aprofundar a pesquisa sobre o papel do PES na gestão em saúde, produzindo alternativas para melhorar as práticas da gestão e atenção nos sistemas e serviços de saúde na Venezuela. A idéia é trabalhar na mesma linha, mas ampliar o escopo da pesquisa, analisando, num primeiro momento, a rede de serviços de saúde num estado da Venezuela, tendo como base: as metodologias de abordagem integrada das dimensões de organização e gestão, financiamento e atenção, e prestação de serviços de Evans; o planejamento estratégico situacional (PES); e o enfoque de Cremadez (Démarche Stratégique), com a finalidade de propor um modelo de organização da rede de serviços de saúde mais eqüitativo. Este trabalho permitiria dar algumas respostas à melhor forma de organizar a rede de serviços de saúde na Venezuela, utilizando, além do PES, outros enfoques de planejamento em saúde e mantendo a categoria eqüidade como central.

Voltar ao topo Voltar