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06/09/2017

Duelo de gigantes

Jorge Bermudez e Luiz Antônio Santini*


O futuro do tratamento do câncer já chegou, e um duelo de gigantes vem sendo travado na indústria farmacêutica. A imprensa acaba de noticiar que a agência reguladora nos Estados Unidos [FDA] está aprovando a introdução da terapia genética contra o câncer, a técnica CAR-T, alterando e reprogramando células T do organismo humano para que reconheçam e ataquem células cancerosas, no mais avançado tento da medicina individualizada. Duas gigantes da indústria farmacêutica disputam essa primazia.

A empresa norte-americana Gilead, que, recentemente, recuperou em pouco mais de um ano investimento bilionário para aquisição de uma empresa, com vistas a lançar os primeiros antivirais para tratamento da hepatite C a preços astronômicos, hoje anuncia um novo meganegócio, ao adquirir a Kite Pharma por 12 bilhões de dólares e com ela seu portfólio de produtos oncológicos, com destaque para a técnica CAR-T. Concorre no mesmo campo a suíça Novartis, que registra, agora, seu primeiro produto utilizando essa técnica.

O tratamento estará no mercado norte-americano a preços em torno de 500 mil dólares por paciente, requerendo, ainda, uma série de cuidados para evitar reações colaterais severas, além de basear-se em procedimentos individualizados que são complexos.

A magnitude do câncer como problema de saúde

A OMS prevê que em 2030, 22 milhões de pessoas, homens, mulheres e crianças, terão câncer e 13 milhões irão morrer em consequência da doença. Além do desastre que isso representa do ponto de vista humano, estudos mostram que, em 2010, o custo com tratamento e perda de produtividade decorrentes ultrapassou 1 trilhão de dólares.

Outras estimativas demonstram que, deixando de lado os custos diretos com  tratamento, o impacto econômico do câncer é de 900 bilhões de dólares, resultado de mortes prematuras e incapacidade, representando 1,5% do PIB global. (ver em www.worldoncologyforum.org). Esses números confirmam dados apresentados pelo relatório do IMS Health de 2015, que refere gastos de 107 bilhões de dólares em medicamentos no ano de 2015.

A prevenção é um componente chave no controle do câncer, mas, mesmo em condições ideais de redução de risco, a maior parte dos casos da doença não é prevenível e irá necessitar de tratamento. O tratamento de câncer, sem dúvida, avançou muito desde os anos 1970, sobretudo para as leucemias na infância e tumores testiculares e de mama.

A cirurgia oncológica tem tido também grande importância no tratamento dos tumores sólidos, como os do aparelho digestivo, constituindo-se como a principal arma terapêutica curativa do câncer nos dias atuais. Para outros tipos de câncer os resultados não têm sido animadores, ao menos na perspectiva de eliminação da doença, conforme apontado no Ato Nacional do Câncer, assinado pelo presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971.

A nova era que se apresenta, da chamada medicina de precisão, permite a identificação de novas drogas, com potencial de atingir alvos específicos. Isso, porém, demanda um processo longo, complexo e extremamente custoso. Esta nova era advém dos conhecimentos gerados a partir do estudo do genoma humano e do código genético de cada indivíduo, bem como da diferença entre as vias de desenvolvimento de células normais e da células malignas.

A despeito das possibilidades abertas nesse caminho, três problemas sérios apresentam-se e terão de ser enfrentados: a resistência às drogas; os efeitos colaterais; e a perda de tempo com relação aos pacientes não suscetíveis aos tratamentos. Outro problema sério é o econômico.

Entre os anos de 2011 e 2015, setenta novas drogas foram introduzidas visando ao tratamento de vinte diferentes tipos de câncer. Ainda segundo relatórios, entre 2005 e 2015, o pipeline das drogas oncológicas expandiu-se em 63%, sendo a principal razão de crescimento as chamadas terapias alvo. Entretanto, Estados Unidos, Japão e a Comunidade Europeia consomem 95% dos fármacos oncológicos, sendo os outros 5% consumidos por todo o resto do mundo. No entanto, é aí que se encontram 61% dos casos de câncer.

Rompendo com a lógica tradicional de medicamentos de síntese química ou rota biotecnológica, a incorporação de novas abordagens anuncia-se para um futuro próximo e para além da imunoterapia, entre as quais estão reguladores epigenéticos, inibidores de enzimas e terapias-alvo que degradam proteínas. Uma vez introduzidas no setor privado no Brasil a custos elevados, certamente também vão impactar o setor público direta ou indiretamente, acrescentando-se, ainda, custos de diagnóstico altamente específico e monitoramento genético. Enquanto esses tratamentos não são incorporados, novos medicamentos para diferentes tipos de câncer são lançados pelo setor farmacêutico, onerando o sistema de saúde que o governo neste momento sufoca ainda mais.

Esse futuro chegará no Brasil de hoje?

Se, na década de 1980, o Movimento da Reforma Sanitária, amplo e suprapartidário, foi capaz de propor mudanças profundas que levaram à afirmação, na Constituição de 1988, da “saúde como direito de todos e dever do Estado”, a atual política governamental caminha em sentido oposto, levando a um desmonte acelerado todas as conquistas sociais arduamente conseguidas.

A EC 95 estabelecendo teto dos gastos públicos e seu congelamento por vinte anos, as propostas de reforma trabalhista e previdenciária, a Lei das terceirizações, a Medida Provisória instituindo o Programa de Desligamento Voluntário, o fim da Rede Própria do Programa Farmácia Popular, o sucateamento da Hemobrás, em Pernambuco, e sua replicação em Londrina (PR), e as mudanças na atenção básica são exemplos de um processo que vai acarretar gravíssimas e, talvez, irreversíveis, consequências, com repercussão internacional. Se aliamos a esse quadro a uma grave crise política e econômica, nosso direito à saúde violenta-se ainda mais.

Os custos dos novos tratamentos certamente são altos, mas não necessariamente os preços praticados refletem o que de fato se gastou. Hoje, o problema de acesso a medicamentos não se restringe a países de média ou baixa renda, tal é o valor cobrado. O nível de gastos desafia qualquer sistema de saúde. Mesmo no setor privado, não se consegue arcar, o que se torna uma barreira para tornar disponíveis esses tratamentos de forma a garantir o direito à saúde como direito humano fundamental.

Sim, o futuro chegou. Mas, sobretudo neste momento, ao congelar os gastos públicos por 20 anos, o governo brasileiro nos estanca no passado.

*Jorge Bermudez é médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas. Luiz Antônio Santini é médico e ex-diretor geral do Instituto Nacional do Câncer (Inca).

Artigo publicado originalmente no portal do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz).

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