08/04/2015
Números, equações, fórmulas: basta olhar um prédio bem construído, uma ponte, uma ferrovia, para nos darmos conta da inegável contribuição da matemática em nosso dia a dia. Mas ainda que ela dê conta de boa parte das atividades humanas, a vida se espalha por pontos cegos, buracos negros, regiões fronteiriças em que a lógica tradicional não penetra. Um desses casos é o tratamento medicamentoso para pacientes com doenças raras. Pelo fato delas atingirem, como o próprio nome sugere, um número pequeno de pessoas, os cálculos para que o fornecimento remédios seja incluído no Sistema Único de Saúde não podem seguir os mesmos modelos de outras doenças. Possíveis soluções, avanços legais e científicos, entre outras variáveis desse tema complexo, foram discutidos durante o segundo evento do Ceensp (Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcellos), de 2015, que teve por título Medicamentos para doenças raras: eficiência econômica versus equidade social.
O debate foi coordenado pelo pesquisador da Ensp Claudio Cordovil. Estiveram presentes na mesa Fernando Aith, da Universidade de São Paulo e Marlene Sturm, do Instituto Canguru, organização que apoia pacientes com doenças raras. Denizar Vianna, da Uerj, não pode participar presencialmente do evento, mas foi exibido um vídeo em que trata do tema durante uma conferência. Cláudio Cordovil foi o primeiro a falar. O pesquisador lembrou que, no Brasil, é considerado doença rara aquela que afeta 65 pessoas a cada 100 mil.
- O que a gente sabe é que 85 % das doenças raras são genéticas. Existem cerca de 6 mil a 8 mil doenças raras, segundo a OMS. Há uma perversidade nisso tudo. Esse nome é muito infeliz, “doenças raras”, principalmente porque, em tese, calcula-se que elas acometam 6% da população brasileira. Nós estamos falando aqui de algo em torno de 13 milhões de pessoas. Se você leva em conta que cada pessoa dessa tem três pessoas na sua família, nós estamos falando de 50 milhões de pessoas que, de alguma maneira, convivem com essa realidade, ou seja, um quarto da população brasileira.
O Brasil lançou, em 2014, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Cláudio Cordovil lembrou que apesar de representar um avanço em termos de cuidado e atenção, essa política não aborda o tratamento medicamentoso. Devido à baixa demanda por esses medicamentos, em condições normais de mercado, eles acabam tendo um custo muito elevado. O problema não é exclusivo do Brasil, como conta Claudio.
- É muito irregular o reembolso desses medicamentos, até em países desenvolvidos e é um problema, especialmente, em países onde a cobertura de saúde é universal.
Claudio lembrou do caso de um medicamento para Hemoglobinúria Paroxística Noturna que custa R$ 800 mil (o valor elevado fez com que o caso recebesse destaque na mídia, depois que o paciente ganhou na justiça o direito ao tratamento). Apesar da cifra ser surpreendente, o pesquisador acredita que é preciso rever a ideia apresentada a partir da economia da saúde de que, em conjunto, prover estes medicamentos teria um custo elevado.
- Um “N” de 50 pessoas vezes 800 mil não é uma calamidade, mas é percebida como uma escolha de Sofia: não seria justo salvar dez pessoas portadoras de doenças raras, ou prolongar por alguns anos mais suas vidas, podendo atender 100 mulheres com depressão pós-parto, ou outras condições mórbidas/mortais. Então, faz parte do nosso trabalho discutir e aperfeiçoar estas políticas tornando-as cada vez mais justas.
Marlene Sturm falou do trabalho do Insituto Canguru, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), que atua em diversas frentes para ajudar os pacientes com doenças raras.
- Em 2009, o Insituto Canguru começou o movimento de doenças raras quando fizemos primeiro congresso sobre o tema, no Brasil. Desde então, algumas associações, que eram específicas de determinadas doenças, começaram a se movimentar também com relação a doenças raras.O Insituto está associado entidades da América Latia e EUA com as quais troca conhecimento e participa de congressos e palestras. Existe já o movimento para se formar uma federação que congregue as associções de doenças raras no Brasil, mas ainda vai levar um tempo para que ela seja criada.
O pesquisador Fernando Aith, da Faculdade de Medicina da USP, em sua fala, discorreu longamente sobre a forma como se procede e julga no espaço da judicialização e porque é necessário discutir o modelo de incorporação de novas tecnologias no Brasil, à luz das doenças raras, e também a forma como o SUS e as autoridades podem prover respostas ao judiciário melhorando a política específica para esta questão, considerando os princípios de universalidade, da equidade e da integralidade que norteiam o SUS.
- Uma pessoa com uma doença rara é uma pessoa que está num grupo vulnerável da população, logo, precisa de uma atenção especial. Esta condição entra em tudo que nós relacionamos como ações afirmativas do Estado, caracterizando um grupo onde o princípio da equidade deve ser respeitado. O atual modelo também deixa prejudicado o princípio de universalidade, na medida em que legitima a exclusão de atendimento pelo sistema. Sobre a integralidade, tem-se observado um deslocamento dos grandes conceitos teórico de promoção, prevenção e recuperação, para a noção de necessidade de saúde. Para toda necessidade de saúde eu tenho que ter uma resposta. No caso dos medicamentos para doenças raras, como em outros casos, com certeza também cabe uma pergunta: essa resposta tem que ser a aquela que paciente quer? Ele deveria poder escolher entre um ou outro remédio? Cabe discutir estas questões, com certeza, mas o que o estado não pode é não oferecer nenhuma opção. Quando isso ocorre, a demanda acaba na justiça e o juiz pelos princípios do Direito, acaba por condenar o Estado a dar o tratamento que o sujeito está pedindo.
Para o pesquisador, as críticas que se faz à judicialização da saúde acabam por prejudicar a ideia da saúde como um Direito.
- Se a gente diz que a saúde é um Direito, estamos dizendo que o cidadão tem o direito de buscar esse Direito. E se ele não acha esse direito no poder executivo, que procure junto ao poder judiciário.
A judicialização, que advém dessa compreensão da integralidade como uma resposta do estado a uma necessidade, tem gerado uma grande quantidade de ações judiciais relativas à saúde. Neste momento, são 400 mil em andamento. Fernando Aith explicou ainda que, em resposta a isso, o poder executivo resolveu tratar a integralidade como um conjunto de protocolos e listas de medicamentos ou serviços, o que não está resolvendo o problema das doenças raras, que não se enquadram nos mesmos.
- A lista é correta, mas incompleta. A gente não consegue responder à necessidade de tratamento de quem não está nela. Isso tem que ser resolvido com a definição de uma política de saúde para atender essas exceções. O executivo precisa inventar uma forma de responder a essas necessidades que continuarão pulando na nossa frente.