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04/07/2008

Escola de Ciências da Saúde do Distrito Federal recebe prêmio por método diferenciado

Aedê Cadaxa


Premiada este ano com o primeiro lugar no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), a Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal (ESCS) está entre as melhores faculdades de medicina do país, junto com outras sete instituições que atingiram a nota 5, pontuação máxima da avaliação feita pelo Ministério da Educação. Com apenas sete anos de existência, e somente duas turmas já formadas, a Escola, mantida pela Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde do Distrito Federal (Fepecs) e vinculada à Secretaria de Saúde, conseguiu esse reconhecimento em tão pouco tempo graças a uma metodologia de ensino diferente das utilizadas pela maioria das faculdades de medicina do país. Trata-se do PLB, sigla em inglês de Problem Based Learning (aprendizagem baseada em problemas). O método foi introduzido pelo médico e diretor da escola, Mourad Ibrahim Belaciano. Ele é o responsável por esta inovação na maneira de ensinar medicina, privilegiando o ensino a partir da rede pública de serviços de saúde.


Mourad, que também é o vice-presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), conta em entrevista como introduziu esse método inovador que privilegia a prática, divide o currículo em módulos - e não por disciplinas - e tem como professores, ou melhor, tutores, profissionais com prática de atendimento na rede pública. Mourad fala também do problema da formação médica no país, e do porquê de os profissionais formados pelas universidades brasileiras não têm perfil para atuar no Sistema Único de Saúde (SUS).


 Mourad: Na ESCS, desde o primeiro ano o aluno começa a aprender a prática médica, diretamente no serviço de saúde. O aluno aprende em todos os níveis do SUS, no centro de saúde e dentro do hospital

Mourad: Na ESCS, desde o primeiro ano o aluno começa a aprender a prática médica, diretamente no serviço de saúde. O aluno aprende em todos os níveis do SUS, no centro de saúde e dentro do hospital


Como surgiu a Escola Superior de Ciências da Saúde?


Mourad: Em 2000 o secretário de Saúde do governo do Distrito Federal, sabendo do meu trabalho na UnB, me convidou para montar um curso de medicina para formar profissionais que pudessem ser incorporados à rede pública. O convite era para montar um currículo inovador, de medicina mais integral, mais humanizada e que privilegiasse a integração do aluno com a rede pública de saúde, já que a maioria das universidades brasileiras não forma médicos com perfil para o Sistema Único de Saúde.



Passamos alguns meses pesquisando experiências e currículos inovadores com essas características. Foi aí que nós descobrimos que existiam currículos de medicina já estruturados na chamada metodologia da aprendizagem baseada em problemas (Problem Based Learning, PBL). Nos fomos buscar esses currículos e descobrimos que havia experiências como essas na Holanda e também no Canadá, e outras três aqui no Brasil: uma na Universidade Estadual de Londrina, outra na Faculdade de Medicina de Marília e uma na Universidade Federal de Roraima.


Naquela época descobrimos também que o Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Ministério da Educação (MEC) estavam discutindo novas diretrizes curriculares para medicina. Essas novas diretrizes acabavam com o currículo mínimo, que era o currículo padrão, tradicional, por disciplinas, estabelecido em 1969, modelo que pauta os currículos de todas as universidades brasileiras. Vimos nisso uma janela de oportunidade, que abria um precedente legal para fazermos as mudanças que precisamos neste novo curso. Então, antes mesmo do lançamento das novas diretrizes curriculares, em 2001, abrimos, em 2000, a escola e o curso de medicina, sabendo que o MEC apoiaria nossa proposta.


Como é esse método?



Mourad: É um método educacional que está ancorado no novo paradigma educacional, o de que o aluno não é um receptáculo de conhecimentos, no qual a questão central do ensino não é apenas o saber, mas o saber fazer. O PBL rompe com a visão fragmentada do ensino, dado por meio de disciplinas, vendo primeiro a teoria para depois conhecer a prática. A idéia desta metodologia é ensinar a partir de problemas.



Trabalhamos com o desenvolvimento por habilidades e atitudes. Os alunos são divididos em pequenos grupos, orientados por tutores, nos quais são apresentados a problemas, casos clínicos, e, por conta própria, têm que correr atrás do conhecimento para resolver o problema. O curso é divido em módulos temáticos e centrado no programa interação-serviço-comunidade.

Esse método está ganhando corpo. Hoje já existem pelo menos umas 30 instituições no país que estão buscando essa metodologia. No entanto, para grande maioria delas é mais difícil inserí-la nos cursos.


Por quê?


Mourad: Porque isso significa mexer no currículo tradicional. O currículo de medicina da universidade brasileira está equivocado, pois ele forma profissionais para o mercado e não para o SUS. Com isso as políticas públicas, os serviços públicos de saúde, o SUS ficam renegados a um segundo plano. Por quê? Porque o currículo tradicional é centrado no hospital universitário, calcado em disciplinas e especialidades. Lá na UnB defendíamos uma outra idéia, a de vincular o hospital universitário ao sistema de saúde. Fomos rejeitados lá na UnB e perdemos o cargo.


Mas, por outro lado, eu vejo que há também esforços para mudança curricular. Veja o nosso caso. A Secretaria de Saúde aceitou o desafiou de criar um curso de medicina nesses parâmetros, seguindo o método PBL e dentro da rede pública de saúde e, portanto, desvinculado de uma instituição de ensino formal. Não há no Brasil nenhuma escola médica vinculada a uma Secretaria de Saúde que busca realizar o que o SUS preconiza. Não há isso. Mas, de fato, as mudanças efetivas ainda estão muito localizadas em disciplinas ou em grupo de professores. As instituições como um todo ainda não conseguiram absorver essas mudanças.


E que mudanças são essas? O que há de inovador na Escola?


Mourad: Nos procurarmos apoiar a currículo em dois grandes setores: o SUS e o método de ensino. As questões do SUS tinham que estar postas como desafio para escola. A preocupação com a gestão, com a qualidade, com a universalização, com a integralidade. Tudo que o sistema ainda está buscando, na prática, para dar sustentação à própria legislação que criou o SUS e estabeleceu estas como suas diretrizes.


Uma questão central do currículo é a integração. A meu ver, esta é a questão mais importante: ter um currículo integrado, unindo teoria e prática, integrando também o aprendizado com a prestação de serviços. Na Escola, desde o primeiro ano o aluno estuda e também já começa a aprender a prática médica, diretamente no serviço de saúde. É a chamada inserção precoce do aluno nos serviços. O aluno aprende em todos os níveis do SUS, dentro do Programa de Saúde da Família, no centro de saúde e também dentro do hospital. Mas não só no hospital, como é na maioria das universidades.


Outro ponto de destaque é a relação entre saúde individual e saúde coletiva. Trabalhamos a partir do conceito de que as doenças não ocorrem aleatoriamente, mas sim em grupos específicos e que têm contextos específicos de vida. Veja um exemplo disso: a hipertensão em mim é uma coisa, já hipertensão em uma pessoa que possui condições de trabalho, habitação e alimentação menos favorecidas é outra. Você não isola o aluno no campus universitário. Os campi das universidades são artificiais, eles tiram você do contexto e o colocam numa redoma 


Já o médico formado de outra maneira, inserido no serviço, acaba tendo uma visão para o social, para o contexto brasileiro, muito maior do que a média dos médicos formados hoje por grande parte das universidades. A medicina não é apenas uma ciência biológica, ela é também uma ciência social. Temos a maior carga em termos de saúde coletiva do Brasil. É nesta disciplina que situamos os alunos nas políticas e programas do Ministério Saúde, na medicina baseada em evidências, na vigilância sanitária, na vigilância epidemiológica.


Como os alunos reagiram ao método, houve resistências?


Mourad: No inicio houve resistências, e é claro que tivemos e ainda temos dificuldades metodológicas. Mas as resistências estão diminuindo pelo sucesso do curso. No início eles estranhavam muito. “Cadê a anatomia?”, “cadê os microscópios?”, “Que história é essa de não ter aula?”, “Cadê os professores para nos ensinar?”. Mas aos poucos eles foram entendendo que a lógica educacional apresentada os favorecia, porque o aluno estuda no ritmo dele, buscando o conhecimento. Não há aquela coisa enfadonha de o aluno dormir em sala de aula e de estudar só para fazer a prova e depois deletar o conhecimento. Com esta metodologia não é possível esquecer o que se aprendeu, pois o conhecimento é resgatado de um módulo para o outro. E o nosso sistema de avaliação é coerente com isso: ou você sabe e passa ou você não sabe e fica no mesmo módulo até saber tudo.


O senhor disse que a grande maioria das universidades não forma médicos para o SUS. O senhor acredita que a sua escola, mesmo sendo uma escola nova com pouca tradição, está mudando esta realidade?


Mourad: Quando saiu o resultado do Enade, ficamos agradavelmente surpresos e muito felizes, porque estamos conseguindo formar uma nova geração de médicos. Eu acredito que estamos próximos de conseguir um médico com o perfil profissional que o SUS deseja. Acho que estamos desenhando um perfil profissional mais adequado aos serviços públicos, como também aos planos de saúde privados. O plano de saúde tende também a procurar o nosso profissional.


Também não achamos que devemos formar somente médicos de saúde da família. O caminho a seguir quem define é o aluno. E o SUS também precisa de especialistas, desde que eles sejam bem formados e entendam a lógica do sistema. O resultado no Enade mostra também que é possível ter uma formação diferente, invertendo a lógica do ensino por especialidades. Eu não quero dizer com isso que estamos criando um modelo, mas acredito que esta experiência deve ser mostrada. Se o SUS buscava um modelo de ensino eu acredito que este é o caminho. Pois a chave de tudo isso está na integração do ensino com o serviço. Esta é a questão central.


E quais são os próximos desafios da Escola?


Mourad: Nosso novo desafio agora é estruturar o curso como escola, melhorar a estrutura física e pedagógica e ter mais autonomia em relação à Secretaria de Saúde. É preciso estruturar a pós-graduação, ter mestrado. Outro desafio é desenhar a carreira de docentes da escola. Nós ainda não temos carreira. Trabalho com profissionais da rede de serviços cujo vinculo é com a secretaria. Se acharem por bem redefinir e colocar estes profissionais para atuarem em outros postos, perco os docentes que foram capacitados no novo método.


Outro desafio é entrar e mudar a residência médica. Os programas de residência médica ainda estão vinculados a uma legislação de 1982. Então, se eu não mudar a residência, todo o esforço da graduação será perdido. É preciso acompanhar as modernas teorias educacionais e de saúde que mostram que em uma sociedade complexa e moderna o sistema de saúde tem que sofrer modificações na sua estrutura e na lógica da oferta. Por exemplo, a maior parte das doenças são crônicas. A hipertensão, por exemplo, tem que ser tratada fora do hospital, mas, no entanto, a população continua procurando os hospitais. O hospital é o grande consumidor de recursos. É preciso rever essa lógica.

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