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13/10/2015

Especialista comenta a ‘desnaturalização dos desastres naturais’

Ricardo Valverde


Professor catedrático de sociologia da Faculdade de Economia, co-coordenador do Programa de Doutorado Governação, Conhecimento e Inovação e investigador permanente do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, João Arriscado Nunes será um dos principais participantes do seminário internacional Desnaturalização dos Desastres e Mobilização Comunitária: Novo Regime de Produção do Saber. O evento será realizado na Fiocruz nos dias 15 e 16 de outubro. Pesquisador visitante na Fundação entre 2011 e 2012, Arriscado é um estudioso, em particular, da investigação biomédica, das ciências da vida e da saúde pública e da relação entre ciência e outros modos de conhecimento. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, ele discorre sobre o conceito de desastre e comenta o mote do seminário, que é a desnaturalização desse tipo de evento, avalia a cobertura da imprensa e aborda a percepção da sociedade a respeito dos desastres naturais.

O que é um desastre?

João Arriscado Nunes: O conceito de desastre é usado, de maneira convencional, para designar eventos extremos, geralmente circunscritos no tempo e no espaço, ainda que as condições que tornam a sua ocorrência possível ou provável e os seus efeitos ou consequências possam ser ampliados no espaço e no tempo.  Esses eventos causam dano ou destruição afetando territórios, comunidades, populações e pessoas. Para que um evento possa ser definido como desastre é necessário que existam condições que geram ou ampliam a exposição e vulnerabilidade e limitam a capacidade de reduzir as consequências adversas do evento . Fala-se em desastre natural quando a sua causa pode ser atribuída a eventos climatológicos, meteorológicos,  hidrológicos ou geofísicos, mesmo quando estão envolvidos processos sociais.

Têm sido propostas, especialmente por pesquisadores no campo das ciências sociais e humanas e por ativistas,  extensões ou modificações desta definição,  de modo a incluir eventos que produzem efeitos análogos, para os territórios e populações humanas afetadas, aos de eventos que cabem na definição convencional de desastre. É o caso, por exemplo, dos efeitos de megaprojetos – como barragens - ou de megaeventos em metrópoles – como os grandes eventos desportivos internacionais -, ou ainda de empreendimentos extrativistas ou de imposição de monoculturas, que geram deslocamentos de populações ou degradação ambiental. A propósito dos megaeventos, Sergio Portella propõs mesmo que se fale de “eventos extremos silenciosos”.  

Uma segunda extensão do conceito de desastre diz respeito a situações em que uma dada população ou comunidade é sujeita a um estado de exceção permanente, como lhe chamou, nos anos 30, Walter Benjamin, vivendo em condições de precariedade e de ameaça à sua vida e segurança que “normalizam” o desastre. Populações sob ocupação, militar ou policial,  ou sofrendo  tratamento que suspende, de fato, e de uma forma continuada, os seus direitos,, pelas autoridades ou poderes a que estão sujeitas, têm sido também descritas como vivendo na “iminência do desastre”, um desastre que ocorre, de fato, de forma continuada, attravés das interferências cotidianas com a sua vida e a sua segurança. Finalmente, tem sido proposto o termo “desastre” para designar as formas de acumulação por despossessão – que consideram os desastres como “oportunidades” -, que caracterizam o capitalismo na sua atual fase neoliberal, como têm mostrado autores como Naomi Klein ou Mike Davis, ou como tem sido abundantemente documentado a propósito da economia extrativista e das suas consequências para os direitos de povos indígenas e de comunidades por ela afetadas, na América do Sul, por exemplo, em países como a Colômbia ou o Brasil.

Por quê desnaturalizar o desastre?

Arriscado: Desnaturalizar o desastre significa considerar o conjunto dos processos que intervêm na origem, no desenrolar e nos efeitos do desastre, de modo a ter em conta as consequências da ação humana, da organização social e económica, do papel das instituições e organizações e das decisões, que são indissociavelmente técnico-científicas e políticas, que configuram as forma de prevenção e de enfrentamento dos desastres e das suas consequências. Deasnaturalizar não significa negar a existência do que se costuma chamar fenómenos ou processo naturais na origem dos desastres, mas considerar a forma como esses fenómenos ou processos são afetados ou modulados pela ação humana, intencional ou não. Desnaturalizar o desastre significa, também, reconfigurar os saberes,  conhecimentos e experiências mobilizados para a prevenção e enfrentamento dos desastres, incluindo os saberes técnico-científicos e administrativos, mas também os saberes locais e baseados na experiência de comunidades e de grupos vulneráveis ou afetados, de modo a permitir a emergênca do que Boaventura de Susa Santos chama ecologias de saberes, associadas ao que eu designo, recorrendo a um termo proposto pelo filósofo John Dewey, de formas de ação inteligente que tenham em conta a complexidade e espeficidade das situações de desastre.

Como avalia a cobertura que a imprensa faz desses eventos naturais?

Arriscado: Não trabalhei especificamente sobre esse tema para poder fazer uma avaliação global e devidamente informada. Contudo, a partir de um conhecimento necessariamente parcial e fragmentado, e falando apenas da mídia impressa, parece-me que, em primeiro lugar, existe diversidade na forma como a imprensa trata os eventos extremos descritos como desastres naturais. Essa diversidade depende do órgão de imprensa em questão (jornal diário, semanário, revista…), do tipo de matéria (notícia, comentário, editorial, peça de jornalismo de investigação, peças de correspondentes no local afetado pelo desastre, entrevistas com autoridades, técnicos ou populações ou comunidades afetadas…), da relação entre texto e imagem. etc. É possível em geral, sugerir que a cobertura midiática dos desastres pode ajudar a consolidar uma visão “naturalizadora” destes, ou pode contribuir para a sua desnaturalização – no sentido que acima dei ao termo. Neste caso, ela pode também contribuir para a colocação do tema dos desastres na agenda política, através de atribuições de responsabilidade, ou acentuar a vertente humanitarista da política de resposta aos desastres, por exemplo.
      
Que tipo de discussões e abordagens sobre o tema têm ocorrido na academia?

Arriscado: As discussões na academia têm sido diversas, consoante a área científico-técnica em questão, incidindo sobre aspectos diferentes do tema. Mas tem-se verificado uma preocupação de convergência em torno de abordagens que, retomando um tema em uso na saúde global, podemos caracterizar de sindémicas – isto é, procura-se entender os desastres a partir da diversidade e heterogenidade de processos naturais e sociais que neles interferem e dos efeitos dessa interferência. Esse debate não significa que desapareçam diferenças entre os saberes disciplinares envolvidos – e entre os vocabulários respetivos - , mas sim que existe um reconhecimento de que fenómenos complexos como os desastres obrigam a uma interlocução de saberes e de competências. A importância e urgência do tema, por sua vez, obrigam a uma procura continuada dos modos de vincular e de configurar mutuamente conhecimento e intervenção. Na Universidade de Coimbra, temos em funcionamento desde há anos um programa de mestrado –de que um dos coordenadores é  o meu colega José Manuel Mendes, que infelizmente não pôde estar presente neste Seminário - que procura precisamente responder a essa exigência, através de colaborações entre pesquisadores de diferentes áreas e de profissionais envolvidos na previsão e enfrentamento de desastres, desde sismos a alagamentos, passando por fogos florestais ou vagas de calor, para dar só alguns exemplos. Temos procurado trabalhar, igualmente, no âmbito de um programa de doutorado interuniversitário, envolvendo as Universidades de Coimbra, Lisboa e Aveiro, sobre a relação entre ordenamento territorial, vulnerabilidade e riscos. No Brasil e, de maneira mais ampla na América Latina, o tema tem merecido uma atenção significativa, traduzida num conjunto importante de iniciativas, de que é exemplo este Seminário Internacional.  
   
E a sociedade, como ela vê essa questão dos desastres?

Arriscado: Também aqui, seria necessário um trabalho de pesquisa sério e intenso para poder responder à pergunta. Reconhecendo, mais uma vez, as minhas limitações, proponho o seguinte enfoque: Quando falamos em sociedade, a propósito de desastres, devemos pensar em primeiro lugar naquelas comunidades, grupos, ou populações que vivem em condições de vulnerabilidade, de exposição a eventos extremos, ou na situação, já mencionada, de estado de exceção permanente, com a sua existência precarizada. Essas populações, as pessoas que as constituem, pela necessidade de enfrentar situações de risco e de precariedade na sua vida cotidiana, possuem uma experiência e um saber sobre a sua própria situação que, em muitos casos, se manifesta através da sua mobilização, demandando mudança nas condições de vida, de moradia, de acesso a infraestrutura e serviços públicos, a transporte, educação, saúde e trabalho. A prevenção de desastres passa, para essas populações, por transformações nas suas condições de vida, incluindo as que estão mais diretamente relacionadas com a proteção contra eventos extremos de natureza geológica ou geofísica, hídrica ou climatológica.

O mesmo se pode dizer da resposta aos desastres e das condições de reconstrução das condições de vida após eventos extremos. Por isso é tão importante encontrar, como tem sido feito em domínios como a saúde, formas de criar espaços de interlocução e de trabalho para a construção colaborativa dos saberes e formas de ação em comum que evitem que a experiência e o saber dos que são afetados seja desperdiçada ou que estes sejam tratados,  por autoridades, instituições e especialistas, simplesmente como informantes.

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