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28/02/2018

Especialista da Fiocruz fala sobre a indústria farmacêutica no Brasil

Alexandre Matos (Farmanguinhos/Fiocruz)


O economista Carlos Gadelha está à frente da Coordenação das Ações de Prospecção da Fiocruz. Já ocupou o cargo de vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da instituição e foi também secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (SCTIE/MS). Em entrevista ao site do Institituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), Gadelha fala sobre as propostas de sua gestão na nova Coordenação, sobre o mercado farmacêutico nacional, esclarece a finalidade do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (Ceis), a função dos laboratórios públicos e como Farmanguinhos se insere nessa configuração. Gadelha destaca ainda a importante conquista da Fundação no fim do ano passado, com a pré-aprovação de cinco novas Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP). Confira aqui o portfólio de Farmanguinhos/Fiocruz. Leia a entrevista:

Farmanguinhos/Fiocruz: Quando foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, o Sr defendeu o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (Ceis). Qual a importância deste Complexo para a saúde pública nacional?

Carlos Gadelha: O conceito de Ceis mostra a contribuição da Fiocruz como essencial para a própria formulação de políticas públicas pelo Estado brasileiro. Inclusive o SUS [Sistema Único de Saúde], que foi concebido, de certa forma, com a grande liderança e participação da Fiocruz. No caso do Complexo, ao invés de fazermos estudos setoriais, farmacêuticos, de equipamentos, diagnósticos, vacinas e serviços, fizemos um sistema produtivo interdependente. Significa que, ao produzirmos um antirretroviral, temos de estar articulados em toda a área de serviços para o tratamento de Aids e para prevenção da doença, por exemplo. Ao produzirmos um medicamento para transplantes, um imunossupressor, como Farmanguinhos faz de forma tão brilhante e tão importante, ele tem de estar associado a toda uma política nacional de transplantes. Nós não estamos lidando apenas com setores fragmentados.

Farmanguinhos/Fiocruz: Qual a lógica do Ceis e qual é sua avaliação sobre a participação da indústria farmacêutica nesse universo?

Carlos Gadelha: Na nossa lógica (Ceis), o foco é a saúde. Para isso, devemos ter uma base produtiva nacional, que tenha autonomia científica e tecnológica. E a indústria farmacêutica é um dos núcleos mais importantes dentro do Complexo Econômico e Industrial da Saúde. Se a gente não tiver um sistema produtivo em saúde forte, tecnologicamente dinâmico, o Brasil será dependente, não conseguirá ter políticas universais de saúde. O SUS depende de uma base científica e tecnológica de produção implantada no país. Do contrário, é um SUS ajoelhado frente aos interesses internacionais.

Uma das iniciativas que o Sr implementou, enquanto secretário de CTIE/MS, foi a possibilidade de celebrar Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP) para medicamentos estratégicos. Que benefícios esse instrumento oferece ao país?

As PDP entram num processo no qual permitem a gente absorver certas tecnologias que já são disponíveis no mundo e, a partir daí, começar a ter musculatura industrial e tecnológica, que, sem ela, não conseguiremos avançar na fronteira do conhecimento global. No conceito do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, no primeiro trabalho de 2002-2003, colocamos como questão central para inovar o uso do poder de compra do Estado. A PDP é um instrumento criado em 2008 na gestão do ministro Temporão [José Gomes Temporão] que tornou realidade tal diretriz.

Farmanguinhos/Fiocruz: É possível inovar a partir das PDP?

Carlos Gadelha: Minha resposta é absolutamente direta: sim, é possível inovar a partir das PDP. O conceito rigoroso de inovação é estar fazendo o que não sabia fazer antes. No caso de Farmanguinhos, é aprender a fazer um imunossupressor, um produto para Aids ou tuberculose, por exemplo. Sem termos capacidade instalada, podemos até ter boas ideias, mas não seremos inovadores. Além disso, o mais importante para um ente produtivo, seja público ou privado, é um horizonte de mercado, garantindo que o que se inovar será adquirido. Dessa forma, o elemento decisivo para que uma instituição pública como Farmanguinhos se envolva em projetos de risco é ter mercado, ter condições de produzir para atender. No caso da Fiocruz, é a saúde pública como um todo. Ao introduzir o instrumento da compra pública, reduz-se a principal incerteza para a inovação. Portanto, as PDP entram num processo e são inovações.

Farmanguinhos/Fiocruz: As parcerias são firmadas com o objetivo de transferir tecnologias de produtos já existentes, e que são estratégicos para o país. Mas como estimular novas pesquisas, mesmo com esse processo de absorção de tecnologia já existente?

Carlos Gadelha: Não basta investir em pesquisa. Investe-se em pesquisa, gera-se conhecimento, e esse conhecimento não vai gerar riqueza para o Brasil. É o mesmo que perguntar “o que é mais importante para o ser humano: os ossos, os músculos ou o cérebro?” Um sem o outro não sobrevive. As PDP são um instrumento fundamental para dar musculatura industrial para a produção de medicamentos com maior densidade tecnológica. E a agenda do futuro é transformar essa musculatura, esse aprendizado em absorver tecnologia, para crescentemente participar da geração de novos conhecimentos.

É importante ressaltar que a PDP é um instrumento coerente com a visão do Complexo Econômico e Industrial que desenvolvemos. Por exemplo, doenças negligenciadas são um papel de Farmanguinhos e da Fiocruz. Não podemos ter produtos na ponta tecnológica e, ao mesmo tempo, termos problemas na área de antibióticos, de penicilina ou de drogas negligenciadas para Chagas, leishmaniose, tuberculose, entre tantas outras. Esse instrumento talvez não seja o da PDP. Isso é missão de laboratório público, de atender doenças negligenciadas.

Mas não podemos aceitar algumas propostas que querem enfraquecer o setor público dizendo limitando a produção apenas para doenças negligenciadas, deixando o segmento lucrativo para o mercado fazer. Não! O ouro tecnológico depende de instituições públicas que acompanhem a tecnologia, senão a gente vai reproduzir o caso da Biobrás, que depois de décadas de apoio público, de financiamento do BNDES para fazer insulina, foi comprado por duas empresas que dominavam o mercado de insulina do mundo e depois a fecharam. E aquele recurso público todo que foi gasto na insulina virou pó.

Muitas vezes as PDP não dão certo. A tecnologia, ao envolver risco, pode dar errado. Não é para chorar, pois ela deixa um rastro de conhecimento, uma sinergia de conhecimento que servirá para outro produto. Isso é outra coisa muito difícil de explicar para um gestor de uma instituição pública burocrática e engessada.

Farmanguinhos/Fiocruz: O mercado farmacêutico cresce vertiginosamente. Neste cenário de grandes investimentos em inovação, qual o papel do laboratório público, mais especificamente de Farmanguinhos, maior produtor público de medicamentos?

Carlos Gadelha: Quando o objetivo do investimento é atender as necessidades sociais, pode-se ter uma racionalização do investimento para aquilo que fará mais diferença para o acesso universal à saúde. Nós podemos racionalizar os gastos com inovação e ter efetividade. Por exemplo, algo que Farmanguinhos fez de modo tão brilhante foi a formulação em Dose Fixa Combinada para o tratamento da Tuberculose e que tem um impacto imenso. Um dos principais problemas da doença é o abandono do tratamento. Quando se faz uma Dose Fixa Combinada, o abandono cai abruptamente. A ordem de grandeza é muito inferior ao que se costuma falar no âmbito das empresas que dominam o mercado farmacêutico mundial.

A segunda coisa, que se trata de um grande desafio para a Fundação neste momento, é uma integração sistêmica com a Fiocruz e com o sistema de ciência e tecnologia. Nós somos poucos e ainda estamos em desenvolvimento, portanto, temos que cooperar. Farmanguinhos deve cooperar com uma rede de instituições públicas, com empresas produtoras nacionais e com o próprio sistema Fiocruz. Isso é um grande desafio. A nossa ciência tem que ser pautada e tem que pautar o desenvolvimento de Farmanguinhos. Não vamos resolver esse desafio nos encolhendo, e ficando com medo. Vamos resolver isso cooperando, focando a inovação para o que a população precisa, e reduzindo essa assimetria global tão forte na área da saúde e farmacêutica.

Farmanguinhos/Fiocruz: Qual seria a estratégia para colocar essa ação em prática?

Carlos Gadelha: A agenda tecnológica que muitas vezes Farmanguinhos deve desenvolver está aqui dentro da Fiocruz. Aqui estão determinados horizontes, que devem dizer que tal tipo de medicamento é o tratamento do futuro para que possamos investir. Neste sentido, temos que aproveitar a potência do sistema de inovação de ciência e tecnologia da Fiocruz. Temos, por exemplo, as duas áreas de assistência: a de infectologia (INI); e a de saúde da mulher, da criança e do adolescente, que é o nosso IFF. Devemos também aproveitar o conhecimento científico que está no Instituto Oswaldo Cruz [IOC/Fiocruz] e nos centros regionais. É preciso montar uma verdadeira cadeia de inovação mirando o cidadão e o acesso. Sabemos que a situação orçamentária é difícil, mas temos modos inovadores com a marca de aproveitar o potencial do sistema Fiocruz e das instituições nacionais, como a UFRJ, que está aqui do nosso lado e tem o parque tecnológico onde será instalada a planta piloto de fármacos de Farmanguinhos [Centro de Referência Nacional em Farmoquímica].

Farmanguinhos/Fiocruz: Como a unidade deve se preparar para enfrentar os desafios da assistência farmacêutica num cenário de pouco investimento em pesquisa e um mercado protegido por patentes?

Carlos Gadelha: Eu fui convidado pela presidente Nísia para coordenar a área de prospecção da Fiocruz, que é justamente a área para pensar o futuro. Só que eu não vou dar um pacote de futuro para Farmanguinhos. Vamos construir isso juntos. A gente tem que, na área da infectologia, sentar com Farmanguinhos com nossa base de pesquisa que está em unidades como o IOC, INI [Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz], e discutir quais são as tendências do futuro, quais são aquelas plataformas tecnológicas que devemos investir e quais são aquelas que não valem a pena investir porque se tornarão obsoletas num futuro próximo. Sem projetos de futuro nós não temos ação no presente.

Se fizermos somente mais do mesmo, estamos fadados ao encolhimento e à perda de relevância. Temos de fazer o que a população precisa, mas devemos estar sempre alertas para que o futuro não fique nas mãos privadas. Precisamos construir esse futuro a partir da inteligência que temos em Farmanguinhos, no sistema Fiocruz, e na rede de instituições nacionais e globais, e que visem ao acesso universal.

Continue a leitura da entrevista no site de Farmanguinhos/Fiocruz

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