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13/07/2012

Especialista fala sobre as iniciativas no combate à tuberculose

Danielle Monteiro e Renata Moehlecke


Causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis, a tuberculose é considerada um sério problema de saúde pública no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde (MS), o país ocupa o 17° lugar entre as 22 nações responsáveis por 82% do total de casos da doença no mundo. Devido a esse fator, a luta contra a enfermidade é intensa em solo nacional. Na última semana, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, anunciou que o Brasil atingiu em 2011 o objetivo proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990, em relação à tuberculose para 2015: reduzir o número de pessoas com a doença em 50%. “Já superamos a meta. Agora, o objetivo é aumentar o número de pessoas curadas pela doença para 80%”, afirmou. O ministro ainda declarou que o governo federal irá investir R$ 52 milhões para ampliar em seis vezes a produção nacional da vacina BCG, que previne contra a doença.    




  

De acordo com a OMS, notificam-se anualmente no Brasil 73 mil novos casos de tuberculose, sendo cerca de 4,6 mil o número de óbitos. Considerada uma doença negligenciada mundialmente, por estar intimamente ligada à pobreza e à má distribuição de renda, a tuberculose ainda apresenta dificuldades em seu controle devido ao aparecimento de bactérias multirresistentes, que agravam ainda mais o problema. Essa semana, o jornal Valor Econômico reproduziu matéria do The Wall Street Journal Americas que aborda a ocorrência na Índia de um tipo mutante de tuberculose, o qual está se mostrando resistente a todos os tratamentos conhecidos, soando o alarme para um novo perigo mundial à saúde (leia a íntegra da matéria aqui). Quais as possibilidades de uma situação semelhante ocorrer no Brasil? Para responder a essa e outras perguntas, a Agência Fiocruz de Notícias entrevistou a pneumologista Margareth Dalcolmo, coordenadora do Ambulatório de Tuberculose Multirresistente do Centro de Referência Professor Hélio Fraga, parte da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). Confira:


Nos últimos quatro anos, a incidência de tuberculose no Rio de Janeiro caiu de 97,5 para 73,9 doentes por 100 mil habitantes. A que se deve essa queda?



Margareth:
O Rio de Janeiro apresenta uma tendência secular de alta incidência e mortalidade por tuberculose, segundo já demonstrado por muitos estudos. Foi a porta de entrada da doença no século 16, trazida pelos europeus. Entre outras razões, sua distribuição sócio-demográfica, sua geografia e suas condições de saneamento e habitação propiciaram a propagação da doença. Durante o século 20, a despeito da introdução da quimioterapia ani-tuberculosa nas décadas pós guerra e da implementação do tratamento de curta duração no início dos anos 80, o RJ manteve a mais alta incidência e mortalidade no país, com programas de controle de atuação fraca e de baixo impacto. Com a adoção de medidas de controle mais eficazes, a descentralização das ações de diagnóstico e tratamento para os diversos tipos de unidades de saúde - como as saúde da família e clínicas integradas -, a intervenção nas regiões e comunidades de mais alta carga - aí o exemplo da Rocinha é emblemático -, o tratamento diretamente observado dos pacientes diagnosticados e o trabalho conjunto entre ao Estado e os municípios, era de se esperar uma redução nos últimos anos. Entretanto, essa incidência ainda é a quinta mais alta do país e o Rio de Janeiro continua apresentando o maior número de mortes por tuberculose, embora se saiba que mais de 50% dessas se deem em co-infectados pelo HIV.


A Índia recentemente soou alarme de um novo perigo mundial para a saúde, anunciando um novo tipo mutante de tuberculose resistente a todos os tratamentos conhecidos. Qual a causa dessa resistência aos medicamentos?



Margareth:
O fenômeno da resistência aos fármacos é iatrogênico, ou seja, é causado pelo homem e decorrente de maus tratamentos anteriores. Há décadas está demonstrado que a resistência do M. tuberculosis, agente causador da doença, se dá através do mecanismo de mutação genética e esta é naturalmente estimulada pela exposição e contato com fármacos. Ora, se o paciente se expõe de modo irregular aos fármacos, istó é, não os tomando diariamente e, portanto, mantendo a chamada pressão antibiótica,  irá se desenvolver resistência, clinicamente verificável pelas graves formas multirresistentes da doença.   Em 2006, foi identificada a cepa denominada XDR ( extensivamente resistente) a partir de surto ocorrido na província de Kwazulu-Natal, na África do Sul,  ocorrido em uma população de mineiros, a maioria portadora do vírus HIV.  Denominou-se desta forma às cepas resistentes à rifampicina + isoniazida e mais a uma quinolona e a um aminiglicosídeo injetável, que são os medicamentos usuais nas formas multirresistentes. Em 2012 foi identificada a cepa chamada super resistente, na Índia, resistente a todos os fármacos existentes e virtualmente fora de possibilidade terapêutica, com as doze mortes ocorridas por severos quadros de tuberculose.


Há algum risco de essa nova cepa resistente a medicamentos surgir no Brasil?



Margareth:
Risco sempre existe, na medida em que os meios de comunicação e transporte hoje são tão ágeis que poderiam trazer um portador e este transmitir a outras pessoas. Porém, a possibilidade de desenvolvimento autóctone no país é baixa, tendo em vista que, ao contrário da Índia e de outros países asiáticos, o Brasil tem taxas de resistência primária aos fármacos anti tuberculose baixas e, além disso, opera o controle da tuberculose com esquemas padronizados, totalmente gratuitos e disponíveis no SUS. O país também tem controle de qualidade sistemático da produção, formulação de quatro fármacos em um só comprimido (as chamadas doses fixas combinadas) e não tem conflito entre medicina pública e privada, ao contrário de outros países, em especial a própria Índia, que, por maior produtora de matérias primas de fármacos, possibilita o acesso a grande número de medicamentos similares e genéricos sem padronização ou gestão e controle adequado de qualidade.


Que tipo de procedimento é realizado com os pacientes que sofrem com esse novo tipo de tuberculose?



Margareth:
O mais crucial é se suspeitar precocemente de que a pessoa possa ter sido contaminada ou desenvolvido uma forma resistente de tuberculose. Isso se dá quando existe contato próximo, domiciliar ou não, com caso-índice portador dessa forma da doença, ou quando a pessoa, mesmo tratada com regularidade com o chamado esquema básico - composto de Rifampicina/Isoniazida/Pirazinamida e Etambutol, que é o padronizado no Brasil - permanece com bacteriologia positiva a partir do segundo mês de tratamento, período em que a grande maioria dos pacientes apresenta negatividade nos exames bacteriológicos. Isso é mais comum em populações vulneráveis, como presos, moradores de albergues ou população de rua, co-infectados pelo HIV e portadores de outras comorbidades.



Uma vez estabelecido o diagnóstico, através de cultura, identificação da micobactéria e teste de sensibilidade, é iniciado o tratamento. Este é feito durante 18 a 24 meses, com a administração de cinco medicamentos, um deles injetável por 9 meses. O custo desse tratamento (atualmente na ordem de R$ 3.000,00 por tratamento, apenas com fármacos, fora os demais exames e a propedêutica necessária ao paciente) é, muitas vezes, superior ao esquema básico usado para tratar as formas sensíveis. Os pacientes são acompanhados com consultas quinzenais ou mensais e observação direta das tomadas dos medicamentos, quer pelo serviço de saúde, quer por uma organização ou instituição perto de seu domicílio. Aí, uma vez mais, entra o papel importante dos serviços de saúde da família (PSFs) que assumem a responsabilidade de dar uma atenção mais individualizada ao paciente em seu local de moradia. Isso faz uma grande diferença na adesão do paciente; de par com os incentivos que o paciente recebe, como vales de transporte e suplementação alimentar.


Uma das dificuldades de sucesso no tratamento contra a tuberculose é a sua desistência por parte dos pacientes. Por que muitos abandonam o tratamento?



Margareth:
Toda doença crônica ou de tratamento prolongado traz problemas de adesão, como já ficou demonstrado em muitos estudos. Na tuberculose isso é emblemático: o tratamento é muito eficaz e, via de regra, o paciente, após o primeiro ou segundo mês de tratamento, sente-se melhor, diminui muito a tosse e deixa de ter febre e sudorese noturna (sintomas muito frequentes) e ganha o peso que perdeu. Com isso, se não for adequadamente tratado, fica muito tentado a não usar os medicamentos diariamente e pelo período de seis meses. Vale comentar que a irregularidade nas tomadas é mais grave que o abandono, pelas razões de exposição ao fármaco e desenvolvimento de resistência.

 

O novo teste, em estudo conduzido nas cidades do Rio de Janeiro e Manaus, que diagnostica a tuberculose em até três horas, está entre os avanços do país no combate à doença. Fale um pouco sobre outros avanços do país na luta contra a tuberculose.



Margareth:
O método rápido molecular, que está em teste para diagnóstico da tuberculose (chamado Gene X-pert) é promovido pelo Programa Nacional de Controle da TB e pela Fundação Ataulpho de Paiva, nas duas cidades. Ele representa uma mudança de paradigma no diagnóstico da doença, uma vez que avalia a possibilidade de implementação sob a perspectiva do SUS e desenvolve análise econômica e de aceitabilidade pelos gestores e profissionais da saúde. 

Após mais de um século com o diagnóstico bacteriológico, feito pela baciloscopia - que exige ambiente de laboratório adequado em biossegurança e pessoal qualificado, de par com a logística de o resultado chegar às mãos do médico para iniciar o tratamento - os métodos moleculares surgem propiciando  a oportunidade de uso em unidades de saúde com requisitos de média complexidade, sem exigência  de biossegurança e permitindo reduzir enormemente o tempo para início do tratamento. Em última análise, aprimorando o conceito de acesso universal, tão incorporado ao ideário do SUS. O ministro Alexandre Padilha declarou recentemente o interesse do Brasil em adotar essa metodologia. Isso exigirá esforços e compromissos de investimento de todas as esferas de governo para implementação e manutenção da técnica, tanto em insumos quanto em pessoal qualificado para operar.



A coordenação de laboratórios do MS (CGLAB), junto com o PNCT, tem trabalhado para aprimorar a rede de laboratórios de bacteriologia do país, tendo havido avanços substantivos com a implementação de métodos mais rápidos do que a cultura convencional para diagnóstico bacteriológico, que pode demorar até doze semanas. A utilização de meios líquidos e métodos automatizados, já disponíveis em sete dos laboratórios estaduais (Lacens), com o controle de qualidade dos exames realizados, que é coordenado pelo Laboratório do Centro de Referencia Hélio Fraga, deverá progredir reduzindo o tempo de espera pelo diagnóstico, ainda um grande entrave no controle da doença.


Quais são os principais entraves e possíveis soluções para o combate à tuberculose no país?



Margareth:
Acesso universal ao diagnóstico, aí implicadas as melhores técnicas, e ao tratamento, com medicamentos de boa qualidade, além da provisão regular e cuidados de humanização na assistência aos pacientes, com profissionais qualificados e serviços com bom acolhimento, são, sem dúvida, a fórmula para se alcançar impacto na redução da doença e sua mortalidade.

Se pensarmos que a tuberculose atinge pessoas, em sua maioria homens, e nas fases mais produtivas de suas vidas, estabelecer o diagnóstico, tratar, curar e evitar sequelas que comprometam a autonomia, possibilitando uma vida normal, é, sem dúvida, o grande objetivo de todos nós.


Que tipo de tratamento é realizado com pacientes do CRPHF/Ensp/Fiocruz que adquirem tuberculose multirresistente a medicamentos?



Margareth:
O ambulatório do Hélio Fraga foi concebido e organizado para assistência a casos complexos de tuberculose e outras micobacterioses e para desenvolvimento de estudos clínicos que testem métodos diagnósticos e novas modalidades de tratamento. Nesse sentido, nos últimos anos, pudemos validar um esquema de tratamento nacional para casos de multirresistência e participar de ensaios multicêntricos internacionais com novos fármacos para formas resistentes da doença.

Para tal, o serviço hoje opera em ambiente com biossegurança adequada, farmácia com condições de armazenamento e dispensação segundo boas práticas, com uma equipe multidisciplinar qualificada em boas práticas clínicas, e capaz de conduzir  assistência a casos referenciados pela rede de saúde, emitir pareceres, orientar alunos e estagiários e desenvolver estudos. Nosso objetivo é obter a certificação e acreditação através dos órgãos competentes para tal.

  

O Laboratório de Referência Nacional para Tuberculose do CRPHF/Ensp/Fiocruz foi recentemente reformado e modernizado para o nível de segurança biológica 3 e implementa um processo de gestão de qualidade. Quais os principais estudos atualmente em andamento?



Margareth:
O laboratório foi modernizado e implementa um processo de gestão de qualidade, porém, ainda não está certificado e acreditado para o desenvolvimento de ensaios clínicos. Para isso, será necessário investimento em recursos humanos qualificados e a efetiva certificação na gestão da qualidade, processo esse que é hoje o objetivo mais relevante. O laboratório tem atividades de rotina que vão desde o diagnóstico bacteriológico, com culturas por métodos convencionais e rápidos, além de desenvolver estudos de técnicas de biologia molecular e sequenciamento genético de micobactérias, de condução própria e em cooperação com estudos multicêntricos.  Nosso laboratório ainda recebe pesquisadores visitantes e estagiários para aprimoramento e para participação em estudos e desenvolve atividades de ensino, com cursos anuais para os profissionais da rede de laboratórios.


O CRPHF/Ensp/Fiocruz coordenada tecnicamente a Rede de Laboratórios de Tuberculose do país. Como é feito esse trabalho?



Margareth:
Por determinação da CGLAB do MInistério da Saúde,  o lab do HF é cabeça de uma rede composta pelos laboratórios estaduais e os chamados laboratórios colaboradores, que incluem alguns universitários de reconhecida qualificação.  Esse sistema permite hierarquizar ações de controle de qualidade de exames e procedimentos, além de manter educação permanente entre os técnicos.



O projeto Capacitação Comunitária para a Prevenção da Tuberculose e Parasitoses Através da Educação Popular Participativa em Saúde, idealizado pela Fiocruz e realizado no Complexo de Manguinhos, investiga as relações entre a doença e a influência do estado nutricional, dos fatores educacionais e das representações sociais ligadas à enfermidade. Sabe-se que a tuberculose é encontrada, sobretudo, em países ou localidades que sofrem com a pobreza e miséria. Qual é o motivo disso e quais são as relações entre a enfermidade e fatores socioambientais?



Margareth:
A tuberculose é uma doença historicamente marcada por forte componente social e econômico, urbana, ligada a condições de vida, ambiente e situação individual de imunidade. Perdeu seu lirismo, se assim pudéssemos dizer, sendo a doença romântica da consumption, que vitimou poetas, artistas e tantos intelectuais até a primeira metade do século 20, localizando-se nas camadas mais excluídas da população. Esse panorama exige, portanto, modalidades de acesso e relação especial com as comunidades, vencendo a exclusão pela violência em muitas comunidades de alta carga da doença, a exemplo do que hoje se faz com as equipes de saúde da família em diferentes comunidades no Rio de Janeiro.


Publicada em 13/7/2012.

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