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29/08/2008

Estudo analisa como médicos vêem os hormônios no bem-estar das mulheres

Fernanda Marques


O papel dos hormônios no bem-estar e na saúde dos indivíduos, assim como na determinação de certos comportamentos, costuma ser amplamente divulgado. Os hormônios ditariam nossas reações frente ao sexo oposto e fala-se até em inteligência hormonal. As mulheres parecem ser as mais afetadas: a tensão pré-menstrual (TPM) e as transformações da menopausa são temas recorrentes e têm alimentado uma grande indústria de tratamentos. A origem dessas idéias a respeito dos hormônios e o porquê do forte apelo que elas conservam até hoje foram investigados pela antropóloga Fabíola Rohden. Os resultados desse estudo estão em artigo publicado recentemente na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Fiocruz.


 Quadro <EM>Mulheres protestando</EM>, de Di Cavalcanti

Quadro Mulheres protestando, de Di Cavalcanti


Pesquisadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Fabíola encontrou no século 19 as concepções médicas que associavam os órgãos genitais e, posteriormente, os hormônios ao comportamento dos indivíduos, sobretudo das mulheres. “É quase como se a mulher, por sua própria natureza, beirasse a patologia. Os genitais pareciam ter uma capacidade singular de interferência na estrutura da mente feminina”, conta a pesquisadora no artigo.


Mulheres que apresentavam comportamentos desviantes, fora dos padrões morais, eram submetidas à ovariotomia, cirurgia para remoção dos ovários. “Essa cirurgia seria, a princípio, empregada para extirpar ovários doentes, tomados por quistos. Sua aplicação, entretanto, se tornou cada vez mais abrangente, e passou a ser comum a menção a esse tipo de cirurgia como recurso para curar definitivamente as perturbações mentais ligadas aos órgãos genitais”, explica Fabíola. Perturbação mental, no caso, era qualquer comportamento reprovável para uma mulher da época. Prova disso é um documento histórico localizado pela pesquisadora segundo o qual a ovariotomia teria se originado a partir da tentativa de um pai de coibir os desejos sexuais da filha.


Realizada “com sucesso” pela primeira vez no Brasil em 1865, essa cirurgia foi tema de várias teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Um desses trabalhos, de 1873, diz, de forma explícita, que a ovariotomia era empregada para “coibir a sensualidade de certas mulheres debochadas”. Afirma também que, embora um quarto das mulheres submetidas ao procedimento morresse, o resultado era satisfatório.


 As teses enfatizariam uma pretensa associação entre problemas nos órgãos genitais e perturbações mentais em mulheres, de modo que a ovariotomia era o tratamento mais acertado aos olhos dos médicos da época (Arte: Rodrigo Carvalho)

As teses enfatizariam uma pretensa associação entre problemas nos órgãos genitais e perturbações mentais em mulheres, de modo que a ovariotomia era o tratamento mais acertado aos olhos dos médicos da época (Arte: Rodrigo Carvalho)


Com o passar do tempo, as teses enfatizariam cada vez mais uma pretensa associação entre problemas nos órgãos genitais e perturbações mentais em mulheres, de modo que a ovariotomia seria o tratamento mais acertado aos olhos dos médicos da época. “Alguns anos mais tarde, já em 1904, assistiu-se a certa reviravolta nesse debate. A tese de Theodorico T. da Silva e Souza contribui de forma singular para compreendermos o que se passava. Esse autor escreve a primeira tese, segundo palavras dele mesmo, sobre o tema da insuficiência ovariana”, destaca Fabíola.


Iniciava-se, assim, uma nova fase, na qual os ovários passaram a ser considerados glândulas que produziam substâncias importantes, inclusive com ação no sistema nervoso. Surgiram, então, diferentes trabalhos que mostravam como a ovariotomia poderia ser danosa, pois ela acarretava a falta das secreções dos ovários, o que, segundo os estudiosos da época, poderia provocar distúrbios mentais. “As cirurgias de extração passaram a ser rediscutidas e desenvolveu-se a idéia da reposição das secreções internas quando a operação tinha sido realizada ou era imprescindível, em virtude de uma lesão. O método utilizado era a opoterapia ovárica, ou seja, tratamento que prevê a reposição das substâncias produzidas pelo ovário”, diz a pesquisadora.


Foi uma transformação curiosa: primeiro, retiravam-se os ovários com a justificativa de curar perturbações mentais; depois, acreditava-se que a falta das secreções dos ovários também poderia levar a esses distúrbios e recomendava-se a reposição de tais substâncias. A insuficiência ovariana e a conseqüente recomendação de uso de medicamentos para repor os hormônios produzidos pelos ovários logo se tornaram assuntos da moda.


Para ilustrar essa situação, Fabíola recorreu às páginas da Revista de Gynecologia e d’Obstetrícia, na década de 20. Lá, a pesquisadora localizou vários anúncios de produtos com princípios hormonais. Entre eles, destacava-se o composto Thelygan, que continha o “extrato esterilizado dos ovários de vacas novas” e era indicado para “todas as enfermidades da vida sexual feminina”, como a “nervosidade geral”.


“O ovário foi convertido no órgão que condensa a feminilidade e capacita a mulher para a função reprodutiva. Sua presença tornou-se imprescindível e a castração passou para segundo plano. As substâncias produzidas por esse órgão passaram a ditar a diferença em relação ao homem e às secreções dos testículos”, afirma Fabíola. “Quanto à diferença entre homens e mulheres, se pelo menos até o final do século 19 era nítida a busca de um órgão que a explicasse e fundamentasse, já nas primeiras décadas do século 20 o desafio era entender como as substâncias produzidas pelas gônadas operam o processo de diferenciação”, completa.


Nesse contexto, a descoberta dos hormônios sexuais tem um papel central. Ela ocorre em um campo ocupado por três atores principais: os ginecologistas, os cientistas de laboratório e as indústrias farmacêuticas. Enquanto no final do século 19 e na primeira década do século 20 os ginecologistas dominaram a cena, já nos anos 20 as indústrias também se tornavam peças-chaves. “Se as mulheres, até a passagem para o século 20, eram governadas pelos ovários, os órgãos da feminilidade, agora elas o são pelos hormônios, as substâncias que determinariam seu sexo e seu gênero. Nesse novo modelo, as perturbações que antes foram tratadas pela remoção dos ovários só poderiam ser solucionadas considerando o equilíbrio dos hormônios. A onda de comercialização dos produtos hormonais caminhou nessa direção”, resume Fabíola.


Contudo, o uso desses produtos permanecia imbuído de um caráter moral. Eles eram prescritos, especialmente, para mulheres cujo comportamento sexual, social, reprodutivo ou estético não condizia com os padrões vigentes. O intuito era reconduzi-las a seus devidos lugares. “O que notamos, então, no discurso sobre ovários e hormônios, não é somente uma descrição de sua função no corpo feminino, mas um tratado sobre como as mulheres se comportam em virtude de seus ovários e de seus hormônios”, conclui a antropóloga.


Publicado em 29/08/08.

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