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23/01/2008

Estudo analisa condições físicas e de saúde de escravos com base em anúncios

Renata Moehlecke


Na segunda metade do século 19, o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro era um dos principais periódicos do país e apresentava uma gama variada de assuntos, com sessões que iam desde as últimas notícias da Europa até avisos de escravos fugitivos. Esses anúncios de notificação de fuga apelavam pela identificação e devolução dos cativos, baseados em uma estrutura básica repetitiva, que apontava dados característicos (idade, aparência e condições físicas, profissão, costumes etc), locais onde viviam e os nomes de seus proprietários.


 Aquarela <EM>Escravos doentes</EM> (1819-20), de Henry Chamberlain

Aquarela Escravos doentes (1819-20), de Henry Chamberlain


É a partir desses anúncios descritivos, publicados no ano de 1850, que a historiadora Márcia Amantino resolveu tentar compreender alguns aspectos sociais e cotidianos da escravidão. Em artigo presente na mais recente edição da revista História, Ciências e Saúde – Manguinhos, da Fiocruz, a pesquisadora verifica as condições de saúde e dos corpos de escravos cuja fuga foi anunciada no jornal em questão. “Valendo-se das características e da saúde desses escravos, pode-se inferir a situação em que viviam”, comenta Márcia.


Foram utilizadas duas estratégias para a obtenção de um panorama das condições físicas dos escravos fugidos. Uma se deu por meio da análise das descrições feitas pelos senhores; a outra, mais ligada à saúde, fundamentou-se no detalhamento dos problemas físicos que cada escravo fugitivo possuía, relacionado ao saber médico ou popular da época. Segundo a historiadora, os anúncios revelam informações de ordem patológica e etiológica (que tem a ver com a enfermidade e com o agente causador desta, respectivamente), assim como fornece dados sobre aspectos anatômicos.


 Cartaz afixado no Rio de Janeiro que alertava sobre escravo fugido em 1854

Cartaz afixado no Rio de Janeiro que alertava sobre escravo fugido em 1854


A situação patológica que mais se destacou nos itens avaliados refere-se ao tipo infectocontagioso, sendo a varíola a mais aludida. “É grande o número de escravos citados nos anúncios como portadores de varíola ou bexigosos, ou ainda como portadores das marcas deixadas pela doença, pois os que sobreviviam a ela ficavam marcados pelo resto da vida”, esclarece Márcia. Ela acrescenta que, entre os casos observados, as doenças causadas por traumas decorrentes de lesões ocupam o segundo lugar em prevalência. Somando-se a estas a classe de doenças provocadas por carências, de acordo com a pesquisadora, fica visível que mais de um terço do universo de indivíduos analisados não possuía boas condições de vida e trabalho.


Outro indicativo da precariedade da saúde dessa população, segundo Márcia, são as marcas corporais, que aparecem classificadas em cinco grupos diferentes. O primeiro e o segundo estão relacionados às marcas infligidas por esses próprios indivíduos, conforme hábitos e crenças das nações de origem. O terceiro é composto por marcas de propriedade de seus senhores. O quarto e o quinto grupo se referem a cicatrizes sem referências específicas e marcas de castigos, respectivamente.


 Anúncios de escravos fugidos veiculados no jornal <EM>O Liberal de Minas</EM> (1868)

Anúncios de escravos fugidos veiculados no jornal O Liberal de Minas (1868)


“Para concluir, pode-se afirmar que as evidências de condições patológicas levantadas a partir dos anúncios de fujões aqui discutidos, pela sua natureza e pela freqüência em que ocorrem, parecem reforçar a hipótese de que um dos grandes motivos que levavam o escravo a fugir eram os maus-tratos, infligidos talvez com a intenção de marcar o corpo como lição àquele e a outros rebeldes”, diz a historiadora, que complementa que maus-tratos não são somente castigos físicos, mas também a má alimentação e a quebra nos diretos adquiridos.


Márcia ainda elucida que não era lucrativo para os senhores pagar pela recompensa e por um escravo impedido de realizar plenamente suas atividades em função das doenças. No entanto, até os doentes mais graves eram procurados. “Tal fato remete não à lógica econômica, mas a uma lógica social de controle da escravaria, em que seria importante recapturar os fugitivos para que servissem de exemplo aos demais, e não apenas para que retornassem a seu papel de produção”.

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