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15/07/2011

Estudo analisa repercussões do uso dos recursos médicos para infertilidade

Marina Schneider


Casar, ter filhos, construir uma família. Quando o sonho que orienta tantos casais esbarra na infertilidade, as alternativas da medicina e da tecnologia reprodutiva surgem como um caminho. A pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) Eliane Portes Vargas estudou, nas camadas médias da cidade do Rio de Janeiro, aspectos da dinâmica e da sexualidade conjugal de casais inférteis associados às tecnologias e recursos médicos utilizados na reprodução assistida. A pesquisa analisa as repercussões do uso dos recursos médicos na vida dos casais e aponta que, entre outros efeitos, a infertilidade pode gerar uma convivência contraditória entre atitudes de escolha e submissão.


 De acordo com o artigo, a contradição entre a escolha de ter um filho e a subordinação, especialmente das mulheres, aos procedimentos médicos, ficou muito clara nos discursos dos casais estudados

De acordo com o artigo, a contradição entre a escolha de ter um filho e a subordinação, especialmente das mulheres, aos procedimentos médicos, ficou muito clara nos discursos dos casais estudados


Publicado no periódico científico Cadernos de Saúde Pública, o estudo é resultado de pesquisa realizada no âmbito da pós-graduação em saúde coletiva, com ênfase nas ciências sociais, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), sob orientação das antropólogas Jane A. Russo e Maria Luiza Heilborn. “Neste artigo, especificamente, nossa intenção foi discutir aspectos que envolvem dinâmica conjugal e sexual de casais inférteis que desejam ter filhos, segundo uma perspectiva antropológica. Soma-se, portanto, a outras análises no campo das ciências sociais sobre o tema da infertilidade, orientadas por diferentes perspectivas”, afirma Eliane.


No estudo, a categoria "casais inférteis" não foi utilizada sob o ponto de vista estritamente biomédico – foram considerados os casais unidos há um ano ou mais, mantendo relações sexuais sem o uso de métodos contraceptivos e que não conseguem conceber. Foram entrevistados seis mulheres e cinco casais, escolhidos por terem declarado vontade de ter filhos e não conseguirem engravidar – o que determina o agenciamento da medicina para a solução do problema. “A recusa masculina em conceder a entrevista foi comum, o que aponta, neste caso, a exterioridade masculina frente às questões reprodutivas e determinou um maior número de entrevistas com mulheres, como parte de um casal ou não”, observa a pesquisadora sobre a metodologia do estudo.


Desejo e constrangimento


Segundo Eliane, há uma transformação de valores na contemporaneidade que permite optar por não ter filhos e isto constitui necessariamente um problema. Porém, na medida em que a mulher quer e, involuntariamente, não consegue engravidar, cria-se um constrangimento. “Causa muito incômodo para o casal não concretizar um desejo expresso por meio de uma decisão racional – uma escolha, portanto. A concepção de um filho, pela fala dos informantes, ainda que entendida como um processo "natural", é sempre planejada, e o filho é considerado uma construção a dois, fruto de um processo decisório que fica no plano da vontade, sobre o qual há controle. Os atuais recursos médicos disponíveis e sua popularização nos estratos médios reforça esta ideia, pois torna este desejo possível. No entanto, na medida em que há um impedimento que foge ao controle de decisão, surgem as inquietações que acometem os casais”, explica. “Se a pessoa tem o desejo e os recursos disponíveis, parece inconcebível não poder ter o filho desejado. Para a classe média, isso se torna insuportável”, afirma. Estas situações são muito recorrentes, pois, apesar dos avanços, os insucessos nas tentativas ainda são grandes.


A pesquisadora destaca, também, a ênfase que os casais dão ao filho biológico. Em um dos casos acompanhados na pesquisa, a mulher já havia tentado engravidar, não conseguiu, adotou uma criança e continuou insistindo no tratamento. “A força do laço biológico é muito marcante. Embora haja um discurso de aceitação da adoção, a noção do filho próprio, ‘de sangue’, ainda é muito presente”, ressalta.


A privacidade e a espontaneidade no processo também foram questões abordadas pelos entrevistados. “Termos como ‘privacidade’ e ‘espontaneidade’ presentes nas narrativas aparecem como expressões obrigatórias do exercício da sexualidade contemporânea, evidenciando o ideal de uma atividade sexual livre de constrangimentos, em contraste com sua submissão aos ditames médicos para fins reprodutivos”, diz. “A queixa dos casais expressa uma concepção de sexualidade íntima e livre de controle. Assim, o desconforto gerado pelas interferências médicas nesta atividade se traduz como uma invasão de privacidade”, esclarece.


Escolha e subordinação


De acordo com o artigo, a contradição entre a escolha de ter um filho e a subordinação, especialmente das mulheres, aos procedimentos médicos, ficou muito clara nos discursos dos casais estudados. “O que parece estar em jogo é o constrangimento da liberdade de escolha, um valor caro para o indivíduo inserido no universo cultural das camadas médias. A partir do momento em que o casal tem que se subordinar às tecnologias e aos ditames da medicina, há uma quebra da espontaneidade, o que parecer contraditório à primeira vista”, afirma.


Segundo a especialista, por mais que os valores tenham se transformado, o modelo "casar e ter filhos" é muito forte, refletindo os valores presente na sociedade – ainda que os valores tenham se transformado e a vida social comporte outras configurações familiares, como, por exemplo, a existência de um casal que não tenha filhos por opção. Mas, quando este modelo não é seguido por uma razão involuntária, a questão fica mais complexa. A pesquisadora observa como dado curioso no caso das camadas médias o fato de as mulheres terem alto grau de escolarização e, mesmo assim, isso não ser suficiente para abalar esta faceta da identidade feminina que é ter filhos.


“Isso integra a identidade feminina também nas camadas médias e faz com que a mulher se subordine a procedimentos médicos em nome do desejo de um filho biológico, por mais que esta subordinação traga até consequências físicas”, explica a pesquisadora. “Elas são muito críticas ao uso das tecnologias, mas, por mais que se questionem, acabam investindo nestes recursos uma vez que promovem uma concepção ‘natural’ em comparação com a adoção”, pontua.


O estudo aponta que a relação dos casais com a tecnologia biomédica é ambivalente, já que muitos casais em uso de tecnologias de estímulo à concepção também utilizam vias alternativas, criticam as intervenções sobre os corpos e a utilização indiscriminada dos procedimentos técnicos. No ‘itinerário terapêutico’ que percorrem, os casais diferenciam as técnicas, medicamentos ou procedimentos avaliados como mais ou menos ‘invasivos’. “A adesão aos tratamentos não ocorre sem restrições. A resistência e a crítica também surgem em situações de interação com os médicos, qualificadas como ‘invasão’, completa.


Segundo Eliane, é importante que estas questões sejam problematizadas tanto no âmbito da experiência individual quanto em termos das políticas públicas uma vez que há uma expectativa social de acesso às tecnologias reprodutivas, ainda que de forma incipiente, pela via do sistema público de saúde. “Qualquer novidade tecnológica na área da reprodução assistida necessita ser bem discutida porque terá efeito tanto na vida social e coletiva quanto na existência individual. A forma como os casais poderão reagir diante da situação com a família, com amigos, no trabalho, com o sistema médico, enfim, todos os efeitos devem ser observados”, ressalta. Acesse gratuitamente aqui a íntegra do artigo Sexualidade e reprodução: usos e valores relativos ao desejo de filhos entre casais de camadas médias no Rio de Janeiro, que traz os resultados do estudo.


Publicado em 15/7/2011.

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