Estudo analisa visões de Carlos Chagas e Mário de Andrade sobre a Amazônia

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Marina Lemle
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Chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus em 1904, Euclides da Cunha encarou uma Amazônia impenetrável e dominada pela doença. Dizia que o homem chegara às terras amazônicas antes que elas estivessem prontas para recebê-lo. Nas décadas seguintes, outras visões da relação entre a malária e o projeto de se construir uma civilização nos trópicos influenciaram o pensamento social sobre a Amazônia. Destacam-se as posturas opostas do médico sanitarista Carlos Chagas, que viajou pela região de 1912 a 1913, e do escritor Mário de Andrade, que aventurou-se em 1927. No artigo Malária como doença e perspectiva cultural nas viagens de Carlos Chagas e Mário de Andrade à Amazônia, publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v.20, n.3, jul.-set), Nísia Trindade Lima, professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz /Fiocruz, e André Botelho, professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, discutem as visões do médico e do poeta.

Barco de transporte na Amazônia. Foto de Mario de Andrade, 1927.
 

“Nos textos de Chagas, estranhamento é a categoria que organiza a percepção a respeito da Amazônia, evidenciada na ideia de patologia dos trópicos a desafiar o conhecimento estabelecido sobre a doença. Empatia, por outro lado, é a categoria-chave para compreender a perspectiva crítica de Mário de Andrade, que valoriza as formas de sociabilidade, crenças e expressões populares da região, inclusive as relativas à malária”, afirmam os autores.

Carlos Chagas liderava a comissão do Instituto Oswaldo Cruz encarregada de avaliar as condições sanitárias e de vida dos principais centros de produção da borracha. A Superintendência da Defesa da Borracha solicitara o estudo porque precisava elaborar um plano para a exploração racional que protegesse os seringueiros de doenças, principalmente a malária. Chagas percebia a doença como importante fator de atraso e obstáculo à civilização, e a higiene e a medicina tropical seriam a saída para a construção de uma civilização nos trópicos. A malária, “o duende da Amazônia”, segundo Oswaldo Cruz, deveria ser combatida. De fato, os médicos destacaram-se na profilaxia e no estudo da transmissão de doenças e do comportamento de seus vetores.

Quinze anos mais tarde, o escritor Mário de Andrade cria novas perspectivas ao abordar a relação cultural dos homens amazônicos com a doença. Nos relatos de sua viagem de três meses à Amazônia, entre 8 de maio e 15 de agosto de 1927, chega a valorizar a malária, chamada afetuosamente de “maleita”, devido à prostração que causa, e comparando seus efeitos ao de outras drogas, inclusive as socialmente aceitas, como o álcool.

A “filosofia da maleita” contrapõe-se aos relatos de Carlos Chagas, que considera a malária ‘o’ mal da região, inaceitável, já que seria evitável por meio de medidas profiláticas. De acordo com Nisia, a medicina tropical, tal como compreendida por Carlos Chagas nas primeiras décadas do século 20, contribuiu para uma visão ampla do processo saúde-doença, envolvendo fatores biológicos, ambientais e sociais; daí se observar, ao mesmo tempo, uma visão sobre saúde e sobre o Brasil. Contudo, a perspectiva de uma missão civilizatória trazia elementos de estigmatização sobre as populações da Amazônia e de outras regiões do país.

“Faltava a empatia com os setores populares que no artigo ressaltamos como contribuição dos textos de Mario de Andrade relacionados à  sua experiência de viagem à Amazônia”, explica a autora. Para ela, a perspectiva sobre saúde e sociedade hoje fica mais rica e complexa se levarmos em conta essas diferentes visões sobre a sociedade.