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03/02/2021

Estudo da Fiocruz avalia evolução da leishmania brasileira

Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)


Quando os primeiros navios portugueses e espanhóis aportaram na costa das Américas, microrganismos causadores de doenças comuns na Europa – mas que nunca tinham ocorrido no solo americano – desembarcaram junto com os navegantes. Causadores da leishmaniose visceral, os parasitos Leishmania infantum fazem parte do grupo de viajantes microscópicos que, apesar das grandes diferenças entre o Novo e o Velho Mundo, conseguiram se estabelecer muito bem por aqui.

Mais de 500 anos depois, um estudo sugere que a evolução do patógeno nos trópicos seguiu um caminho surpreendente. Leishmanias que sofreram uma deleção no DNA, ou seja, perderam parte do seu código genético, se espalharam pela maior parte do Brasil. O fenômeno, que nunca foi detectado na Europa, também foi registrado em Honduras. A deleção já tinha sido observada em algumas cepas brasileiras e pode ter relação com a resistência à miltefosina, um medicamento usado para tratamento da leishmaniose visceral na Índia que apresentou eficácia reduzida em um ensaio clínico no Brasil.

Mapeamento mostra que parasitos L. infantum com deleção no genoma (em branco) estão disseminados de Norte a Sul do Brasil. Clique para acessar a imagem ampliada no artigo (crédito: Schwabl, P., Boité, M.C., Bussotti, G. et al)
 
 

A partir do maior número de sequenciamentos genéticos de parasitos L. infantum já realizado no país, o novo estudo mostra, de forma inédita, o alcance do traço genético no Brasil. Entre 17 unidades da federação analisadas, 15 apresentam predominantemente microrganismos com deleção.

“Encontramos a deleção em todas as regiões do país. Nossos achados apontam que a ocorrência da deleção é frequente e dispersa geograficamente, o que pode ser um reflexo do processo evolutivo de adaptação, algo que favoreceu a dispersão do parasito aqui”, afirma a pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Leishmaniose do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Mariana Boité, que divide a primeira autoria do artigo com o pesquisador da Universidade de Glasgow, Philipp Schwabl.

A correlação entre o traço genético e a falha na terapia com miltefosina foi encontrada em uma pesquisa anterior, que analisou o genoma de 26 cepas de L. infantum referentes a pacientes que participaram do ensaio clínico no Brasil.

“Por se tratar de um número limitado de casos, é possível que tenha ocorrido um viés. Mas considerando que a maior parte das cepas brasileiras apresenta a deleção, é fundamental fazer testes para investigar se há relação entre esse traço genético e a suscetibilidade à miltefosina e a outros fármacos. Se for confirmada a resistência, isso coloca em xeque o uso do medicamento no Brasil, tanto para pacientes, como para cães”, afirma a chefe do Laboratório de Pesquisa em Leishmaniose e coordenadora do estudo, Elisa Cupolillo, lembrando que o fármaco ainda não é usado em casos humanos no país, mas já está autorizado para a leishmaniose visceral canina.

Resultado de uma forte colaboração internacional, o estudo foi liderado pelo IOC/Fiocruz em parceria com a Universidade de Glasgow, na Escócia, e o Instituto Pasteur, na França. Participaram ainda Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Instituto Karolinska, na Suécia, e Universidade Charles, na República Tcheca. Os achados foram publicados na última sexta-feira (29/1), na revista científica Communications Biology, publicação do grupo Nature-Springer Research.

 

 
Pesquisa contou com sequenciamento genético de 59 parasitos depositados na Coleção de Leishmania do IOC (imagem: Coleção de Leishmania/IOC/Fiocruz)
 
 

“A colaboração científica estabelecida pelo IOC com a Universidade de Glasgow e o Instituto Pasteur está na origem desse trabalho. A combinação de diferentes expertises foi fundamental para a realização do grande número de sequenciamentos genéticos e das análises de bioinformática robustas, que produziram resultados inéditos sobre a diversidade genética dos parasitos L. infantum no Brasil”, ressalta Elisa.

“Esse estudo foi capaz de lançar mais luz sobre a distribuição e evolução de uma deleção genética em L. infantum, que pode ter consequências importantes para a nossa capacidade de tratar a doença”, destaca o pesquisador do Instituto de Biodiversidade, Saúde Animal e Medicina Comparada da Universidade de Glasgow, Martin Llewellyn.

“Nossa colaboração contínua visa compreender como essa deleção fornece uma vantagem seletiva para os parasitos e como podemos explorar essas informações para melhorar medidas de controle da leishmaniose visceral”, declara o chefe da Unidade de Parasitologia Molecular e Sinalização e diretor do Departamento de Parasitas e Insetos Vetores do Instituto Pasteur, Gerald Spaeth.

Além do Laboratório de Pesquisa em Leishmaniose, o estudo teve participação dos Laboratórios de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas e de Biologia Molecular de Parasitas e Vetores do IOC. As cepas sequenciadas na pesquisa foram obtidas a partir da Coleção de Leishmania do Instituto, que reúne quase quatro mil amostras de leishmanias de diferentes espécies coletadas principalmente no Brasil.

Perdas e ganhos

O trecho deletado no genoma dos microrganismos brasileiros encontra-se no cromossomo 31 e é responsável por orientar a produção de quatro moléculas. Entre elas está uma enzima importante para a nutrição do patógeno, que também é considerada um fator de virulência, contribuindo para a infecção ao ajudar a L. infantum a escapar de mecanismos de defesa dos hospedeiros. O fato de o microrganismo sobreviver sem problemas e até se beneficiar da ausência desse gene chamou a atenção dos cientistas.

“Em relação aos outros três genes deletados, há diversas cópias no DNA e o prejuízo ao parasita poderia não ser tão grande. Mas o gene que orienta a produção da enzima 3’ectonucleotidase só tem mais uma cópia descrita no genoma das leishmanias e essa é uma enzima muito importante na biologia do parasito”, explica Mariana.

Em ensaios em laboratório, os pesquisadores confirmaram a baixíssima atividade da enzima 3’ectonucleotidase nas cepas com a deleção e descobriram um possível mecanismo de compensação para sua função. Os testes mostraram que estes microrganismos apresentam aumento na ativação de outra enzima, chamada de ecto-ATPase, que atua em uma via paralela também importante para o parasito.

Enquanto o papel biológico da enzima 3’ectonucleotidase precisa ser compensado, a redução na virulência do patógeno pode ser uma vantagem evolutiva. “Ainda é preciso investigar todas as consequências dessa deleção. Por exemplo, se o parasito não causar infecção tão grave, o cão, que é o principal reservatório da leishmaniose visceral, pode permanecer assintomático. Isso é bom para o parasito, pois o animal doente tende a se recolher, enquanto o assintomático circula pelo mato e pelas casas, disseminando o parasito”, pontua Elisa.

Diversidade genética

Para chegar aos resultados, os pesquisadores sequenciaram o genoma completo de 59 amostras de L. infantum do Brasil, o maior número decodificado no país. Outras 75 amostras foram submetidas ao teste de PCR, que permite detectar pontualmente a presença ou ausência da deleção. Reunindo ainda informações depositadas em bancos de dados genéticos na internet, os cientistas chegaram ao total de 201 amostras analisadas, sendo 177 do Brasil.

A deleção foi encontrada em 126 parasitos brasileiros e dois de Honduras. Em análises filogenômicas, que investigam relações de ‘parentesco’ entre os parasitos a partir de suas semelhanças genéticas, os pesquisadores identificaram que a deleção é um traço herdado de um ancestral distante. “Nossas análises apontam que esse traço genético veio da população que foi importada da Europa. A questão que permanece é porque essa característica não se propagou lá, mas foi selecionada aqui”, pondera Mariana.

Considerando as 17 unidades da federação com amostras contempladas, os pesquisadores observaram situações particulares. Em apenas dois estados, os microrganismos com a deleção não foram maioria. O Mato Grosso do Sul foi o único local que não apresentou parasitos com o traço genético. No Piauí, a preponderância foi de cepas sem deleção. Tanto no Piauí como no Mato Grosso, três variedades de microrganismos foram encontradas: com deleção, sem deleção e heterozigotos, isto é, parasitos gerados por recombinação entre diferentes cepas e que apresentam um par do cromossomo com deleção e outro par sem deleção no seu código genético.

Entre os diversos fatores que podem influenciar na diversidade genética dos parasitos, os pesquisadores citam a variedade de vetores presentes em diferentes regiões. “Na Europa, a L. infantum infecta insetos do gênero Phlebotomus. Já nas Américas, o inseto que transmite o parasito é do gênero Lutzomyia. Mesmo dentro do Brasil, há diferentes espécies de vetores. O principal é Lutzomyia longipalpis, mas no Mato Grosso do Sul, por exemplo, o ciclo de transmissão tem participação de Lutzomyia cruzi”, enumera Mariana.

Os cientistas destacam que o estudo levanta muitas perguntas e algumas delas já devem começar a ser investigadas na próxima etapa do trabalho. “Além da possível associação com a resistência, queremos analisar exatamente quais são as consequências da deleção sobre o parasito. Como essas cepas infectam os animais e os vetores? Qual é curso da infecção? Há diferenças na infecção por parasitos com e sem deleção? Essa são apenas algumas questões que podem ser importantes para ações de controle da doença e que precisamos responder”, ressalta Elisa.

Leishmaniose visceral

O Brasil é um dos países mais afetados pela leishmaniose visceral no mundo, com mais de 2,5 mil casos registrados em 2019 segundo o Ministério da Saúde. O agravo é classificado como doença negligenciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), atingindo principalmente populações pobres que vivem em condições precárias de habitação.

No ambiente urbano, os cães são o principal reservatório dos parasitos. Os vetores do parasito são insetos flebotomíneos, popularmente conhecidos como mosquitos palha, que proliferam em locais úmidos, com sombra e matéria orgânica, como folhas e frutos, além de fezes de animais. Estes vetores contraem o parasito ao picar animais infectados e o transmitem para as pessoas pela picada.

A infecção atinge órgãos internos como fígado e baço e leva à morte em 95% dos casos, quando o tratamento precoce não é realizado. A terapia no Brasil é oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sendo feita com medicamentos antimoniais, que são administrados por via venosa.

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