02/02/2021
O início da campanha de vacinação contra o novo coronavírus em vários países do mundo trouxe à tona a discussão sobre como medicina e saúde pública se relacionam com os diferentes significados das liberdades civis. O tema integra análises de historiadores da área, que há muito ampliaram o foco das investigações de epidemias para além do impacto demográfico de doenças amplamente disseminadas.
Diante da complexidade e da gravidade de eventos enfrentados ao longo do último ano, desde a constatação do primeiro caso de Covid-19, os historiadores “buscam dar respostas às ansiedades sociais e ao pânico moral”, destaca a Carta do Editor da mais recente edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v.27, n. 4, out./dez. 2020), editada pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). A publicação já está disponível na íntegra no portal SciELO.
“Historiadores profissionais têm sido muito procurados por jornais, webcasts, blogs e eventos especiais para que comentem sobre a epidemia de Covid-19. Respondendo essas solicitações, construíram um valioso diálogo com novos públicos, evitando comparações precipitadas e, ao mesmo tempo, oferecendo diferentes interpretações. Contextualizaram os acontecimentos, lançaram mão de evidências arquivísticas coletadas há anos, citaram estudos históricos anteriores e advertiram contra previsões de um futuro pós-pandemia apocalíptico ou paradisíaco”, observa o historiador Marcos Cueto, editor-científico da revista e pesquisador da COC/Fiocruz.
Os artigos deste número revelam quão essencial é a pesquisa histórica para a compreensão do passado e do presente. Se hoje temas como desigualdades sociais, estigma, liberalismos e panaceias ressurgem com a Covid-19, como enfatiza Cueto na Carta do Editor, a história aponta que balas mágicas são insuficientes para dar conta das epidemias. Há que se fortalecer os sistemas de saúde e reduzir as desigualdades sociais. “Rápidas soluções tecnológicas como vacinas e a cloroquina de hoje foram experimentadas no passado com o intuito de conter epidemias sem que se modificassem as condições de vida dos pobres”, acrescenta o historiador.
Em artigo que abre a seção Análise de HCS-Manguinhos, Soraya Lodola e Cristina Campos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), contam que, no fim do século 19, as condições de vida dos trabalhadores das zonas rurais do Estado de São Paulo transformaram as fazendas privadas em terreno fértil para a disseminação do tracoma, doença infecciosa que pode levar à cegueira. Submetidas a situações insalubres e sem um aparato para prevenção e tratamento, levas de agricultores, boa parte imigrantes italianos, sofreram com a infecção. Para combatê-la apropriadamente, foram essenciais o acesso às propriedades e uma rede sanitária que incluísse as zonas rurais, reduzindo a disparidade do atendimento à saúde.
Revisão historiográfica: a construção de um país tropical
Entre os 13 artigos que compõem a seção, figuram ainda trabalhos sobre a Liga Brasileira de Higiene Mental; parto humanizado; narrativas de viagem de Hermano Ribeiro da Silva, na década de 1930; além de um estudo realizado por um grupo de pesquisadores de diferentes instituições do Brasil, entre os quais Luisa Massarani e Marina Ramalho, da COC/Fiocruz. A investigação, que joga luz sobre a percepção pública da ciência, foi realizada a partir de 12 grupos focais com alunos de escolas públicas e privadas para compreender como a TV contribui na construção de percepções sobre a ciência entre os adolescentes.
A publicação traz ainda uma revisão historiográfica, na qual José Augusto Pádua (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Alessandra Izabel de Carvalho (Universidade Estadual de Ponta Grossa) reúnem obras fundamentais para a compreensão da história ambiental do Brasil; estudos sobre imagens e fontes; e resenhas sobre publicações que abordam reformas e políticas sanitárias na Espanha; eurocentrismo científico, ciência em contextos periféricos e saúde pública na China a partir do coronavírus.
Ao longo deste primeiro semestre de 2021, novas instruções serão estabelecidas para os autores que submetem artigos para HCS-Manguinhos. Entre as mudanças, está a aceitação de originais do tipo preprint, ou seja, textos já públicos em plataformas como SciELO Preprints. Outra novidade será a criação de um repositório com os dados utilizados pelos autores dos artigos publicados, na linha dos preceitos do movimento ciência aberta.