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08/02/2007

Estudo dimensiona a incidência da hanseníase no Amazonas

Grace Soares


Traçar ações de combate e erradicação de doenças é a última etapa de um processo que vai do diagnóstico da situação à avaliação das suas possíveis causas naturais. Doença milenar, ainda hoje a hanseníase atinge a população de vários países, pondo o Brasil como o segundo no ranking de incidência dessa endemia que ataca nervos e pele. A zona urbana de Manaus, capital do Amazonas, teve 4.104 casos registrados pela Fundação Alfredo da Mata (Fuam) no período de 1998 a 2004. Entender as rotas de propagação da doença pelo estado é munir-se de informações capazes de subsidiar o desenvolvimento de ferramentas de controle epidemiológico eficazes. Essa foi a prerrogativa do estudo Geoprocessamento de casos de hanseníase detectados em Manaus, AM: 1998 a 2004, uma pesquisa feita por especialistas da Universidade Federal do Amazonas, da Fuam e do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane (CPqLMD), unidade da Fiocruz no Amazonas, no início de 2005 e com resultados já consolidados e com perspectiva de aplicação.


 O encontro das água escuras do Rio Negro com as barrentas do Rio Solimões, em Manaus (Foto: Go Brasil)

O encontro das água escuras do Rio Negro com as barrentas do Rio Solimões, em Manaus (Foto: Go Brasil)


O CPqLMD, nos últimos anos, procurou investir na qualificação das ferramentas de análise da situação dessa e de outras doenças. É um processo de acumulação de experiências em conjunto com a assimilação de idéia novas. Isso resultou em uma mudança de visão. Hoje existe uma dedicação maior em se buscar o método de análise mais apropriado, incorporando a ele, se necessário, componentes novos. O resultado não poderia ser outro: a pesquisa é pioneira na área. “A proposta era fazer um diagnóstico da situação da doença em Manaus utilizando técnicas de geoprocessamento para caracterizar a sua espacialização. A pesquisa é uma das frentes de ação do Programa de Controle da Hanseníase (PCH), gerenciado pelo Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde”, afirma Antônio Levino, mestre em saúde pública, pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) e pesquisador da Fiocruz/AM.


Para Maria da Graça Cunha, do Departamento de Ensino e Pesquisa da Fuam, o projeto da distribuição espacial da hanseníase em Manaus trouxe resultados importantes para que PCH-AM definisse prioridades de intervenção, otimizando os recursos financeiros disponíveis. Pesquisas anteriores comprovaram a diferença na manifestação da doença de acordo com os níveis de organização espacial (bairros, distritos, comunidades, zonas etc). A formação do espaço urbano segue um padrão de urbanização que é ditado pela pressão da migração das pessoas. Assim, é determinada, também, a formação dos subespaços que explicam as diferenças encontradas no padrão geográfico da incidência da hanseníase. A doença acompanha a expansão urbana e determina a dinâmica de sua distribuição, tornando necessária a definição de um modelo de divisão espacial da cidade que mantenha uma representação fiel do processo de formação do espaço urbano e de sua influência nos problemas de saúde.


“Estudando a evolução geográfica de Manaus é possível identificar os pontos a partir dos quais a cidade começou a expandir. Assim, precisamos explicar o espaço para entender a doença. Seguindo o modelo desenvolvido por geógrafos que estudam a urbanização, dividimos Manaus em centro e periferia”, revela Levino. Essa medida permitiu que se estudassem os padrões espaciais da tuberculose, Aids, meningite e do dengue.


 O Teatro Amazonas, que completou 110 anos, e ao fundo o porto de Manaus (Foto: Viagens & Imagens)

O Teatro Amazonas, que completou 110 anos, e ao fundo o porto de Manaus (Foto: Viagens & Imagens)


Para o estudo da hanseníase optou-se pela incorporação de outros recursos técnicos. O escolhido na pesquisa foi o método estatístico, que faz cálculos considerando a lógica espacial, considerando a probabilidade dos eventos próximos tenderem para a semelhança enquanto os distantes tendem para a diferença. O passo seguinte foi definir a escala geográfica (bairros, distritos, zonas etc) que referenciaria a doença na cidade. Foi escolhida a menor unidade de análise possível, o setor censitário. Como não havia informação sobre o nível de vida e potencial risco de adoecimento pela hanseníase das 4.104 pessoas, utilizou-se dados de ordem sócio-econômica (oriunda do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e sobre a doença (fornecidos pelo sistema de saúde).


Para localizar e referenciar os endereços a equipe do projeto acionou a ajuda dos correios, do CadLog (sistema de mapeamento informatizado dos logradouros), do Programa da Saúde da Família e utilizou as folhas de coleta do IBGE. Apenas um percentual de 15,4% dos casos registrados não pode ser localizado. “Buscamos uma homogeneidade interna, ou seja, uma área que comungue de equivalência ambiental, econômica e geográfica. E a melhor alternativa era optar pelo georreferenciamento via setor censitário”, salienta Levino.


Espaço e doença


Manaus é constituída de 1.536 setores censitários. Que áreas concentram uma maior incidência da hanseníase? O cálculo é simples: pega-se a taxa de detecção que consiste na divisão do número de casos novos da doença em todo o período pela população de cada setor censitário, e multiplica-se por dez mil. O valor bruto dessa equação revela um quadro geral da distribuição da doença, mas com baixa confiabilidade. “Os dados epidemiológicos da hanseníase em 2006 foram de prevalência de 5,57 casos por dez mil habitantes e de detecção de 2,24 casos novos por dez mil habitantes. O Amazonas é ainda um dos estados brasileiros que apresenta níveis endêmicos altos de hanseníase, embora estudos de tendência baseados em números de casos novos anuais e de ocorrência da enfermidade em crianças mostrem que há declínio da incidência da moléstia”, aponta Maria da Graça.


 Porto de Manaus (Foto: Ministério dos Transportes)

Porto de Manaus (Foto: Ministério dos Transportes)


Segundo Levino, o preço que se paga pela precisão dos números (cálculo bruto) é a perda da estabilidade dos dados num contexto geral. Ele diz que a própria taxa de detecção é uma estimativa, ou seja, resulta num número subdimensionado. Nesse momento, entra em cena o Sistema de Informação Geográfica (SIG), armado de um conjunto de dados geográficos precisos e de um software capaz de ajustar esse desnível previsível. “Encontramos a estimativa do número de casos, o programa faz a correção. Num raio de 700 metros do centro do universo de análise, definido pelo SIG, todas as casas que estão nesse perímetro são consideradas vizinhas. É feito, portanto, uma ponderação da taxa individual por uma média dos vizinhos. Assim, extrai-se uma taxa suavizada, respeitando as semelhanças existentes nesse limite”, destaca o pesquisador.


Isso ocorre porque no cálculo bruto podem-se verificar taxas altas de alguns setores (fazendo uma avaliação individual), enquanto que áreas próximas apresentaram um indicador menor. Como o conceito de vizinho pressupõe a idéia de semelhança, áreas de pouca incidência individual, indiretamente, também podem representar incidência elevada, caso suas áreas vizinhas apresentem taxa média de detecção mais elevada.


Na opinião de Levino, perceber essas diferenças significa intervir de forma organizada no controle da endemia. É o que rege a lógica da vigilância em saúde. Algumas questões surgem a partir desse diagnóstico: o aparato de abordagem da doença é distribuído de forma eficiente? As unidades de intervenção estão localizadas em pontos estratégicos?


Analisando os mapas


Observando o mapa, Levino afirma que o padrão na distribuição espacial da hanseníase tem expressão maior em quatro pontos: na área central da cidade e suas proximidades (zonas Oeste e Centro-Sul); além das zonas Leste e Norte. As explicações são as seguintes. A área central de Manaus é um espaço consolidado, antigo, sede da expansão urbana. Ele agrega algumas características peculiares, como alta densidade populacional, o que aumenta a taxa de contato entre as pessoas e a circulação do bacilo. Décadas se passaram e a população dessa área já angariou um padrão de resistência ao bacilo maior e o mesmo já se mostra consolidado. Nessas condições, a doença já assume um status de endemia. Ao contrário, a pobreza, o contato alto, a baixa resistência da população e as condições precárias de vida – mesmo com a circulação do bacilo de forma mais baixa – são ingredientes perfeitos para o aumento da receptividade do bacilo gerando um padrão ampliado da distribuição da doença. Esse é o quadro observado nas periferias.


 Torre de observação do Experimento de Grande Escala da Biosfera na Amazônia (Foto: Inpa)

Torre de observação do Experimento de Grande Escala da Biosfera na Amazônia (Foto: Inpa)


Com exceção das regiões Oeste e Centro-Sul, que mostram um padrão de periferia semelhante ao do centro, as regiões Leste e Norte comungam dessas características gerais, mas contando com alguns dados específicos, principalmente, relacionados à origem da doença. “A região leste da cidade é considerada uma periferia recém construída. Trata-se de um espaço entre a Reserva Adolpho Ducke e o Distrito Industrial. Houve uma explosão populacional por conta da criação do distrito e o foco da propagação da doença deveu-se, principalmente, às precárias condições de vida das pessoas”, explica Levino. Há muitos anos, existia na Colônia Antônio Aleixo um leprosário, no qual os doentes – na ausência de medidas de tratamento – viviam em regime de asilo. Na década de 80 houve uma grande mobilização para eliminar esses centros que resultou no fechamento da colônia e no fim do tratamento asilar. Advindo desse caso, há dúvidas sobre a origem dos focos de hanseníase na Zona Leste, que poderiam ser oriundos da área central ou da Colônia Antônio Aleixo.


Por último, a Zona Norte – próxima à área do Tarumã – o que pode ter relação com a migração da doença pelo Centro da cidade, sendo a Zona Leste a sua fonte de origem, demonstrando que a expansão urbana não obedece a uma ordem linear de formação de bairros. “Estudos na área da epidemiologia molecular são uma das possibilidades de projetos que podem lançar novas evidências sobre esse processo. A idéia é comparar os bacilos e analisar a existência de parentescos. Teorias de ordem ambiental também estão tentando descobrir os reservatórios naturais da doença”, conclui Levino.


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