03/03/2008
Marcelo Garcia
Um estudo desenvolvido pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC) da Fiocruz analisou o impacto da infecção pelo parasito Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, sobre as células musculares do coração. O comprometimento cardíaco é uma das principais causas de mortalidade associada à doença. Os resultados comprovaram testes anteriores, que associavam a presença do parasito à liberação de cálcio no interior das células cardíacas e mostraram a relação da infecção com as chamadas conexinas, proteínas fundamentais para o batimento sincronizado do coração. Dessa forma, o estudo pode ajudar a compreender melhor como a doença de Chagas afeta o órgão e provoca problemas como arritmia. A pesquisa também reforçou a idéia de que entre as cepas de T. cruzi existem diferenças que precisam ser levadas em consideração para o estudo da doença.
|
O estudo de Adesse abriu caminho para o entendimento da infecção do músculo cardíaco pelo T. cruzi |
O estudo analisou a expressão da conexina 43, uma proteína de grande importância para o sincronismo do batimento cardíaco, em culturas de células musculares cardíacas infectadas pelo T. cruzi. “As conexinas são proteínas que formam junções comunicantes, permitem a passagem de pequenas substâncias e a transmissão dos impulsos elétricos pelo tecido cardíaco, o que é fundamental para a contração muscular do órgão e para o sincronismo de seu movimento”, conta Daniel Adesse, que desenvolve o estudo no Laboratório de Ultra-Estrutura Celular do IOC durante seu doutorado no Programa de Pós-graduação em Biologia Celular Molecular do Instituto. “Apesar de haver mais de 20 tipos diferentes de conexinas, nas células musculares do coração aparecem apenas quatro delas, sendo a conexina 43 a mais abundante no ventrículo”, completa. No estudo, foram utilizadas células cardíacas de camundongos e a cepa Y do T. cruzi, uma das mais comuns no Brasil.
A expressão das conexinas nas células cultivadas foi medida em intervalos determinados - 1 hora, 2 horas, 6 horas, 24 horas, 48 horas e 72 horas desde o primeiro contato das células com o parasito. “Percebemos um aumento muito grande dessa expressão na primeira hora, mas, depois disso, ela voltou a valores normais”, explica o pesquisador. “Ao fim de 72 horas, quase no fim do ciclo intracelular do parasito, a expressão da proteína cai, o que ocasiona a perda de comunicação entre a célula infectada e o resto do tecido”.
Além de registrar alterações nas conexinas, o estudo pode ajudar a explicar, ainda, resultados anteriores obtidos por outros grupos de pesquisa, como o aumento da quantidade de cálcio no citoplasma da célula em contato com o parasito e o espalhamento do mesmo para suas vizinhas. Segundo o pesquisador, a origem da liberação do cálcio é o retículo endoplasmático, onde existe uma reserva do íon. “A variação constante no nível de cálcio no interior da célula é muito importante para o batimento cardíaco, pois ela é um dos fatores que faz com que a célula contraia ou relaxe,” explica Daniel, acrescentando que o parasito interrompe esse ciclo, o que pode ajudar a entender os problemas que a doença de Chagas traz ao coração. “Ele interrompe a variação e quando esse processo é atrapalhado o trabalho do coração como um todo também fica prejudicado”.
Segundo Daniel, ainda não se sabe exatamente o que leva a todas essas alterações. “Por um lado, o aumento da quantidade de cálcio estimularia uma ação protetora, o fechamento das junções comunicantes (formadas por conexinas) entre a célula e suas vizinhas. No entanto, o espalhamento do cálcio para as outras células do tecido pode estar relacionado ao aumento da expressão das conexinas, que parece criar novas passagens para os íons, mecanismo que talvez seja induzido direta ou indiretamente pelo T. cruzi”, ressalta. O pesquisador afirma que o cálcio parece, ainda, ser um importante elemento do processo de invasão celular do parasito. “Apesar desse mecanismo ainda ser pouco conhecido, o cálcio provavelmente influencia no processo, seja por facilitar a penetração do parasito na membrana, seja por estimular a fagocitose do mesmo e, dessa forma, sua entrada na célula”.
O estudo realizou, também, experiências in vivo para tentar relacionar a presença do parasito com a expressão das proteínas. Para tanto, foram analisadas células cardíacas de camundongos por volta do décimo dia após a infecção, fase considerada aguda da doença. Segundo o pesquisador, o resultado também apontou uma significativa diminuição na expressão das conexinas, apesar dos animais ainda não demonstrarem nenhum sinal claro de arritmia.
Além de dar novos passos no sentido de entender como a infecção por T. cruzi afeta o coração, o estudo trouxe mais resultados interessantes. A partir da comparação de suas observações com as de outras pesquisas, pode-se perceber, por exemplo, que as conseqüências da infecção para a expressão das conexinas varia de acordo com a origem das células cardíacas e da cepa de T. cruzi utilizadas. “A grande questão é a possibilidade de cepas diferentes do parasito gerarem reações diferentes no organismo hospedeiro”, explica Daniel. “Só agora essas variações têm recebido mais atenção e ainda precisam ser muito melhor entendidas”.
O trabalho, premiado na categoria painel da área de Biologia Celular, na 23ª Reunião da Sociedade Brasileira de Protozoologia, ocorrida em novembro, foi orientado pelas pesquisadoras Maria de Nazareth Meirelles e Luciana Ribeiro Garzoni, do Laboratório de Ultra-Estrutura Celular do IOC.