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10/08/2016

Evento debate mudanças na cidade do Rio devido à Olimpíada

Portal COC


Na corrida para sediar a Olimpíada de 2016, o Rio de Janeiro passou por uma série de transformações que visaram apresentar a metrópole brasileira aos olhos do mundo como uma “cidade-espetáculo”. A lógica que guiou as transformações, no entanto, passou ao largo dos interesses da maioria da população: abriu-se caminho para a especulação imobiliária, remoções de populações em grande escala voltaram à agenda e perdeu-se a oportunidade de se preservar a memória de partes importantes da cidade.

Nunca houve divórcio entre asfalto e favela, mas a interação entre essas diferentes áreas restringe-se aos lugares de servir, observou participante do evento (foto: Glauber Gonçalves)

 

A avaliação sobre as mudanças que têm tido lugar na capital fluminense é de Sandra Maria Souza, moradora da Vila Autódromo e participante do Comitê Popular Copa & Olimpíada. Atuante na defesa da comunidade e crítica aos impactos dos megaeventos em áreas populares do Rio, a ativista participou em 28 de julho da mesa-redonda As favelas e o direito à cidade no acervo de Anthony Leeds. O evento precedeu a abertura da exposição O Rio que se queria negar, que traz uma série de fotos do antropólogo norte-americano retratando favelas cariocas na década de 1960.

“A Vila Autódromo é perseguida há 30 anos pela especulação imobiliária. O real motivo da sua remoção atualmente passa por esse processo de remoção olímpica”, afirmou Sandra no evento realizado no Museu da Vida da Fiocruz. “Houve agora esse grande pretexto que é a Olimpíada. Em nome dela, desconstruiu-se uma cidade e construiu-se uma cidade para quem?”, questionou a ativista.

Na avaliação de Sandra, as políticas e intervenções levadas a cabo beneficiaram uma pequena parcela da população ao apostar em grandes obras e na construção de museus e monumentos. “Temos aí o Museu do Amanhã que destrói a história do passado e do presente de um povo”, disse ela sobre o edifício erguido na zona portuária do Rio, por onde desembarcaram milhões de africanos escravizados. O novo museu, curiosamente, não se detém sobre esse período da história brasileira.

Pobres são excluídos de zonas valorizadas das cidades

Sandra argumentou que esse projeto de cidade foi implementado em detrimento de investimentos que fossem ao encontro dos interesses das classes mais populares, que continuam condenadas a habitar áreas sem acesso a serviços de transporte de qualidade, com infraestrutura de saneamento inadequado e urbanização precária.
“Temos uma cidade projetada de acordo com as necessidades de uma pequena minoria, uma população que retém o capital da cidade”, disse durante o evento. “Insiste-se em deixar essa população habitar apenas as áreas onde não existe moradia com dignidade, em áreas abandonadas pelo poder público. Toda vez que uma área, uma região é valorizada e uma infraestrutura de transportes e saneamento básico chega a esse local, essa mesma população é expulsa e removida”, criticou.

Por conta da construção da Vila Olímpica na região da Barra da Tijuca, cerca de 700 famílias que viviam na Vila Autódromo foram removidas para outras áreas. As ordens de remoção sofreram forte oposição dos moradores, que resistiram ao processo que Sandra classifica como “higienização social”. “Não é permitido que haja pobres no entorno na cidade olímpica, não é permitido que haja pobres e favelas no entorno de lugares valorizados da cidade”, denunciou.

Ao fim, apenas 20 famílias conseguiram manter residência no local. “A Vila Autódromo entra para a história como a comunidade que conseguiu resistir ao processo de remoção olímpica, mesmo tendo chegado ao final com 20 famílias. Elas representam uma infinidade de outras famílias que já foram removidas na nossa cidade ao longo da história, de famílias removidas no mundo inteiro por esse processo de remoção olímpica, por esse processo de disputa de terras que o capitalismo instaura”, disse.

Interação entre favela e asfalto: restritas aos lugares de servir

Ao se referirem às relações entre favela e “asfalto”, os participantes da mesa-redonda evitaram usar a metáfora da “cidade partida”, termo disseminado pelo livro homônimo do jornalista Zuenir Ventura, por considerar que estas duas partes da cidade estão fortemente ligadas uma à outra. Essa integração, no entanto, se dá de forma restrita e condicionada, apontou a socióloga Nísia Trindade Lima, vice-presidente de Informação e Comunicação da Fiocruz, ao mencionar as mulheres subindo o morro com latas d’água na cabeça, retratadas por Anthony Leeds.

“Com essa água, eram lavados os lençóis das casas de madame, como os trabalhadores chamavam as mulheres de classe média nos anos 1960. Nunca houve um divórcio entre o asfalto e a favela. Ao contrário, havia uma forte interação, mas era restrita aos lugares de servir”, disse Nísia.

Se no passado a favela foi associada a mitos, como o da marginalidade e da desordem ou idealizada de forma romântica, hoje essas localidades se encontram fortemente relacionadas à abordagem da violência urbana, destacou a socióloga. Para Sandra, essa integração parcial está ligada a uma visão que associa a favela ao crime e que trata a população pobre como perigosa.

“Somos bem-vindos na casa dos nobres como babás para cuidar dos seus filhos, como porteiros para cuidar da segurança de sua residência, como faxineiros para fazer a limpeza, mas não somos bem-vindos como vizinhos”, afirmou.

“É impossível se pensar o Rio de Janeiro sem a favela”

Ao falar sobre as fotos feitas por Anthony Leeds, autor de A Sociologia do Brasil Urbano, Nísia ressaltou que a obra do antropólogo apresenta a favela como um espaço de grande dinamismo, onde tem lugar a vida social dos moradores e no qual estes buscam dignidade. “Nós vemos [nas fotografias] a arrumação nas casas, o cuidado das pessoas”, pontuou. “Seja como for, a favela é uma referência secular na imagem das cidades brasileiras e principalmente do Rio de Janeiro. É impossível se pensar o Rio de Janeiro sem se pensar a favela.”

Ativista social e doutorando em História das Ciências e da Saúde na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), o morador de Manguinhos André Lima também abordou os estigmas que ainda são associados à favela atualmente. Ele relatou que, em um curso que ministrou para profissionais de saúde pública, visões estereotipadas sobre essas localidades afloraram entre os alunos.

“Os estigmas todos apareceram em sala de aula: os moradores de favela estão ali porque querem, eles não se organizam para lutar, eles são preguiçosos. [É] uma série de pessoas que lidam com a favela: eram enfermeiras e profissionais da atenção básica que estavam reproduzindo isso”, disse. "É muito grave. Isso acaba limitando as pessoas no campo simbólico de enfrentamento." 

O mito da “apatia”, no entanto, não poderia estar mais longe da realidade. Segundo Nísia, já nos anos 1950 um movimento político começava a aflorar nas favelas brasileiras de forma intensa. Mesmo durante a ditadura iniciada em 1964 havia focos de organização de moradores, que diante da dificuldade de se mobilizar no ambiente sindical por conta da forte repressão, agrupavam-se nas localidades em que moravam.

“No Brasil, com tanta informalidade no trabalho, com tanto desemprego, com a dificuldade de se construir uma classe operária mais forte aqui no Rio, o lugar de moradia foi muito importante para a articulação política. Era onde se podia encontrar seus pares, seus iguais, conversar, lidar com os problemas do dia a dia”, afirmou Nísia.

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