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13/10/2021

Fiocruz debate pandemia e desigualdades sociais em Princeton

Ciro Oiticica (Agência Fiocruz de Notícias)


A socióloga e presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, apresentou, na última sexta-feira (8/10), a conferência Pandemia e Desigualdades Sociais: Desafios para a Saúde Global. O evento integrou o Global Health Colloquium Series, conjunto semestral de palestras do Programa em Saúde Global da Universidade de Princeton. Lima agradeceu o convite da universidade e do Brazil Lab, hub que conecta pesquisadores e professores interessados na gestão pública do país. A mediação foi de Arbela Griner, pós-doutoranda do Programa e organizadora do evento. 

Valores, fato social total e interdependência

Na apresentação, a socióloga desde o início alertou para a ausência de neutralidade de sua exposição, na medida em que definiu quatro elementos como valores orientadores: a defesa da ciência, a saúde, a cidadania e a democracia. Um dos temas centrais foi a produção e o acesso às vacinas no atual contexto de pandemia de Covid-19. Um paralelo foi estabelecido entre vacinas e água potável para defender o status desse dois bens básicos como bens públicos. "Dada a recorrência de epidemias nesse século 21", afirmou, "é possível pensar que esses cenários serão mais frequentes e que as vacinas serão de fato um bem essencial para a coletividade". 

Dois conceitos centrais da teoria social atravessaram toda a apresentação. A ideia de "um fato social total", acrescido do aspecto global, foi tomada do pensamento do antropólogo Marcel Mauss, e dos cientistas sociais Frédéric Vandenberghe e Jean-François Véran, para se referir a epidemias, por afetar todas as dimensões da vida social, sem ser possível separá-las. "A experiência da variante gama no Amazonas" exemplificou, "com suas condições de transmissão, dada a aglomeração provocada pelo transporte fluvial, explicita a íntima relação entre situações sociais e epidemia". O conceito de interdependência, desenvolvido na sociologia de Norbert Elias, por sua vez, ressaltaria a perspectiva relacional na sociedade, como os eventos se influenciam mutuamente. O desdobramento desse conceito proposto em um texto de Tatiana Landini teria apontado, por exemplo, a centralidade da Grande Peste no século 14 para o estabelecimento das primeiras agências de saúde pública, mostrando como pandemias e políticas públicas interagem. 

Desigualdades em nível nacional e internacional

Com essa base, foi analisada a articulação das políticas públicas em nível global. Importantes referências para elas, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e sua Agenda 2030, a despeito de um eventual ceticismo, foram valorizados pela presidente da Fiocruz como um importante pacto global, um compromisso que permite a convergência de expectativas e ações na busca de se atingirem esses objetivos. Considerando-se também o Relatório sobre Desenvolvimento Humano de 2019, a ideia de desenvolvimento foi além da mera ampliação da renda. Em termos de expectativa de vida, por exemplo, o relatório revelou que entre 2005 e 2015, em países de baixa renda, houve aumento considerável da expectativa de vida para recém-nascidos. 

No entanto, a desigualdade ainda é grande para a expectativa de quem já atingiu 70 anos, sendo de apenas mais 5 anos em países de baixa renda, contra 12 anos em países de renda alta. Outro dado diz respeito à vida escolar. Enquanto se observou entre 2007 e 2017 um aumento expressivo da população que completou o ensino primário, a desigualdade ainda é enorme para a parcela que completou a educação universitária, o que seria ainda mais impactante ao se considerarem as mudanças no mundo do trabalho e da tecnologia. "Nesse cenário imediatamente anterior à pandemia", pontuou Lima, "havia a persistência de certas desigualdades, apesar da melhora em certos indicadores. Uma nova geração de desigualdades severas no desenvolvimento humano está emergindo com a pandemia, mesmo que se estejam reduzindo muitas daquelas do século 20, ainda não superadas". A pandemia teria não apenas acentuado essas desigualdades persistentes, como criado novas.

O Relatório de Desenvolvimento Social, de Jeffrey Sachs, presidente da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, publicado recentemente, revelou ainda que pela primeira vez desde 2015, houve uma regressão nos ODS em 2020. A pandemia, além de uma emergência sanitária global, teria provocado também uma crise do desenvolvimento sustentável. 

Outros dados impressionantes foram apresentados, retirados do artigo Assimetrias Globais e Desafios para o futuro da Saúde, que a pesquisadora escreveu junto com Carlos Grabois Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz). Lima alertou que a pandemia intensificou a concentração de renda entre o 1% no mundo, sobretudo no Brasil. O país lidera o ranking de concentração de renda, tendo o topo da pirâmide enriquecido continuamente entre 2010 e 2019, e ocupa o 9°  lugar entre os países mais desiguais do mundo em 2020, em um total de 164 países, de acordo com o índice Gini. O 1% mais rico concentra o equivalente a 33,7 vezes a renda dos 50% mais pobres, enquanto 30% dos brasileiros estão na pobreza e 10%, na extrema pobreza. No mundo, por sua vez, a pandemia aumentou tanto o número de milionários quanto sua renda. Eles possuíam 35% da riqueza mundial em 2000 e hoje possuem 46%.

A desigualdade também se daria entre os países. E "a mãe de todas as desigualdades", segundo a socióloga, é a desigualdade no conhecimento, na inovação e na produção de importantes bens para a saúde. Isso se refletiria, entre outras coisas, nas assimetrias relacionadas à propriedade intelectual, nas restrições à transferência tecnológica, na concentração das áreas produtoras de vacinas e no acesso às doses.

Importância das vacinas e do multilateralismo

A importância das vacinas se inscreveria nesse contexto global de assimetrias e lançaria o desafio de uma estratégia global de vacinação. Lima afirma que haverá uma enorme iniquidade na superação da pandemia e na recuperação mundial. "Mas os efeitos serão para todos", acrescenta, "por se tratar de um fato total social e global". A cooperação internacional e o multilateralismo terão, segundo ela, um papel central ma promoção de alguma equidade nesse cenário.

Nesse sentido é que a vacina precisaria ser vista como um bem público universal. "Como sugeriu Jonas Salk, inventor da vacina para a poliomielite em 1955 que recusou seu patenteamento", ilustrou Lima, "patentear a vacina seria equivalente a patentear o sol, um bem tão importante que precisa ser acessível a toda a sociedade". No entanto, outros interesses teriam prevalecido em 2020, relacionados a uma economia da saúde e ao exercício de uma geopolítica do conhecimento: "o que se viu foi uma enorme disparidade em relação à produção e à detenção da tecnologia para as vacinas", lamentou a pesquisadora.  

Em relação ao acesso à primeira dose de vacina também haveria uma brutal assimetria. Alguns países sequer atingiram 10% da população vacinada com a primeira dose, como é o caso de quase todos os países africanos. Há dificuldades de vacinação também na América Latina, sobretudo ao se considerar a imunização com duas doses. E a forte correlação entre renda per capita e acesso às vacinas comprova, com evidências científicas e epidemiológicas, o déficit de justiça e equidade em relação ao acesso à vacina. 

A pandemia reforçou assim barreiras para os ODS e exacerbou riscos, desigualdades estruturais e desafios sistêmicos já existentes, segundo Lima. Ela sobrecarregou sistemas de seguridade social que já vinham sendo subfinanciados, como é o caso do SUS, além de diversos outros impactos no emprego, nas migrações, na ajuda humanitária, na educação, nas cadeias globais de produção. 

O multilateralismo teria então esses desafios pela frente. Haveria tentativas, ainda insuficientes, de fortalecê-lo, ao mesmo tempo em que se deveria lidar com forças econômicas poderosas. "Mecanismos de redução das iniquidades, especialmente em relação ao acesso às vacinas, precisam ser fortalecidos no âmbito multilateral", defendeu a presidente da Fiocruz, "como a iniciativa Covax Facility". 

Apesar das críticas que sofreu, a atuação da OMC foi valorizada por Lima, pelo papel positivo que viria desempenhando nos últimos dois anos, com muitas atividades, como a elaboração de manuais, protocolos, diretrizes, criação de importantes repositórios, organização de encontros e grupos de trabalho, entre outros. "Há ainda discussões para um tratado internacional sobre pandemias que deverá acontecer em novembro, em uma sessão especial da Assembleia Mundial da Saúde", revelou.

Atuação da Fiocruz

A resposta da Fiocruz à pandemia foi então apresentada ao público de estudantes da Princeton, de pesquisadores e professores em gestão em saúde pública. "Mobilizamos os esforços de todas as unidades, da biomédica à das ciências sociais. Produzimos diagnósticos, kits e análises, pesquisas, testes clínicos para medicamentos e vacinas, rede genômica, comunicação, educação, treinamento de profissionais da saúde, suporte a populações vulnerabilizadas, cuidados especializados para pacientes em estado graves e produção de vacinas", enumerou Lima. Ela disse ainda que o Observatório da Covid-19 foi criado, para embasar as políticas da Fiocruz com um acompanhamento especializado da pandemia. Campanhas de vacinação foram promovidas, para avaliar os efeitos em larga escala da vacinação em massa, como aquelas de Paquetá, Botucatu e do Complexo da Maré. "Neste último caso", disse Lima, "tivemos uma experiência muito bem-sucedida em cooperação com a sociedade civil e movimentos sociais locais, que nos permitiu verificar uma redução significativa de casos após a primeira dose". 

Foi destacada ainda a produção de vacinas pela Fiocruz, em acordo com a Astrazeneca, que incluiu a transferência tecnológica. Mais de 100 milhões de doses foram entregues, segundo a presidente da instituição, e está em curso a produção de um IFA Nacional, ainda em pré-validação. "Poderemos ter uma produção inteiramente nacional nos próximos meses", afirmou. A escolha da Fiocruz pela OMC, junto com um laboratório da Argentina, para ser um centro de produção de vacinas m-RNA para a América Latina e Caribe foi celebrada por Lima. 

Ela finalmente divulgou os Seminários Avançados em Saúde Global e Diplomacia da Saúde, promovidos pelo Centro de Relações Internacionais (Cris/Fiocruz) e pelo Centro de Pesquisa Estratégica, ambos setores da Fundação.

Diálogo com o público

Uma série de perguntas passou então a enriquecer o debate, em interação com o público. Entre outros temas, foram discutidas as especificidades regionais no enfrentamento da pandemia, a questão da propriedade intelectual, as dificuldades da vacinação no Brasil em comparação com aquelas enfrentadas em outros países, o recorte racial da incidência da pandemia, e os desafios enfrentados por mulheres na atuação institucional. 

Nísia Trindade Lima explicou então que a Fiocruz adota uma visão abrangente das diferenças regionais, em diálogo com a agenda e as autoridades locais. As unidades espalhadas pelo país, em uma lógica de descentralização da instituição, facilitaria a compreensão dessas especificidades regionais. Em relação à propriedade intelectual, a presidente da Fiocruz defendeu a posição adotada pela OMS, que busca reforçar a produção local de vacinas com a transferência tecnológica, de acordo com a ideia de que a vacina deve ser um bem público, com produção e acesso disponíveis a todos. 

Ao contrário de algumas experiências em outros países, as dificuldades no Brasil não se treia dado por uma recusa à vacinação, segundo Lima, "por termos uma aceitação superior a 80% às vacinas. Nossa dificuldade tem sido mais em convencer as pessoas a comparecer para a segunda dose". 

No Brasil, também se verificou, segundo ela, um recorte racial alarmante na incidência de infecções e óbitos, na medida em que o maior número deles se deu entre a população negra e parda. Em relação aos desafios da representação enfrentados por mulheres, a socióloga, primeira presidente mulher da história da Fiocruz, destacou o dado de que, apesar de a maioria dos profissionais da Fiocruz serem mulheres, essa proporção cai significativamente quando se pensa nos Conselhos Deliberativos da instituição. "Reforço a importância de políticas públicas para a superação dessas desigualdades", acrescentou Nísia, "como o Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz, que promove debates e consolida nossa agenda institucional, por exemplo, por meio da discussão e implementação de ações afirmativas". 

Agradecimentos e encerramento

Ao final, Nísia Trindade Lima renovou os agradecimentos ao Programa em Saúde Global da Universidade de Princeton pelo convite, ao Brazil Lab pela divulgação e a Arbela Griner pela mediação e organização. Ela enalteceu o evento, que caracterizou como um passo essencial para o aperfeiçoamento das políticas públicas de enfrentamento à pandemia e para a sinergia em maior escala das diversas iniciativas postas em práticas pelo mundo.

A socióloga reforçou que é impossível discutir a pandemia apenas sob o viés de seus efeitos imediatos. Ela alertou para  seus impactos duradouros, persistentes, e que constituirão, segundo ela, desafios em sete âmbitos: ambiental; demográfico; relativos às desigualdades; biotecnológico; informático/comunicacional; relacionado às mudanças no mundo do trabalho; e democrático. Esses impactos se relacionam a condicionantes sociais mais amplos", observa a pesquisadora, "que demandam uma resposta em nível multilateral nas relações internacionais e que também envolvem a relação direta em uma rede de instituições da saúde". Ela defendeu uma cooperação internacional multinível, mais virtuosa e que reforçasse os valores da ciência, saúde, cidadania e democracia. "Pensando no Brasil, mas também em uma escala planetária", acrescentou, "em um planeta pelo qual todos nutrimos esperanças".

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