25/09/2014
A morte prematura, aos 29 anos, não impediu Gaspar Vianna de entrar para o rol dos principais nomes da ciência médica mundial na primeira metade do século 20, ao descobrir a cura de uma doença que infligia graves lesões na pele e nas mucosas das vítimas, levando muitas delas à morte: a leishmaniose tegumentar. O caminho aberto pelo cientista foi o mesmo trilhado, mais tarde, para curar uma outra forma da doença, a leishmaniose visceral, que ataca órgãos internos.
Jaime Benchimol (à direita), ao lado de Silvio Carvalho: Tratamento vislumbrado por Gaspar Vianna para a leishmoniose é comparado à descoberta da penicilina (foto: Glauber Gonçalves)
No centenário de sua morte, Gaspar Vianna foi tema de um seminário promovido em Teresina pela Fiocruz Piauí, a Casa de Oswaldo Cruz e a vice-presidência de Pesquisa, Ensino, Informação e Comunicação da instituição. Além de discutir o legado do médico do Instituto de Manguinhos, o evento promoveu um debate sobre perspectivas no combate à doença, que hoje ressurge como um grave problema de saúde pública no Brasil, espalhando-se por diversos Estados.
A doença despertou o interesse de pesquisadores brasileiros a partir de 1908, quando uma epidemia atingiu operários que trabalhavam na construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que interligaria São Paulo a Mato Grosso. Na época, a doença ficou conhecida como úlcera de Bauru, explicou o historiador Jaime Benchimol em sua apresentação no evento. A partir de então, a leishmaniose cutânea, como posteriormente passou a ser chamada a enfermidade, foi reconhecida em diversas partes do Brasil e de países vizinhos.
Convidado por Oswaldo Cruz a integrar o Instituto de Manguinhos após concluir o curso de Medicina em 1909, Gaspar Vianna foi quem descreveu o agente patológico da doença, ao qual batizou de Leishmania brasiliensis, depois de uma discussão intensa no meio científico questionando se tratava-se de uma espécie diferente das já então conhecidas. “Gaspar Vianna descreve a espécie Leishmania brasiliensis, diferenciando-a das leishmanias do Velho Mundo”, resumiu Filipe Costa, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e da Fiocruz Piauí. As leishmanioses são transmitidas através da picada de mosquitos flebotomíneos, que inoculam o protozoário nos seres humanos e em outros animais.
Hoje, conforme apontou o professor Carlos Henrique Costa, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), sabe-se por meio de biogeografia e de um trabalho de sequenciamento, que a leishmania se originou no continente sul-americano. “Talvez o protótipo da leishmania seja a Leishmania brasiliensis, a mais antiga. Ela teria feito o caminho inverso ao do ser humano, que saiu da Eurásia e veio para as Américas. [A leishmania] saiu da América do Sul, migrou pelo continente americano, e subiu pelo estreito de Behring, que era congelado”, disse no evento.
Segundo Benchimol, Gaspar Vianna decidiu experimentar o tártaro emético para tratar a leishmaniose tegumentar motivado por estudos ingleses sobre o uso de compostos derivados de antimônio para o tratamento da tripanossomíase. O uso do antimônio ao longo da história causara controvérsia, no entanto. No século 16, o suíço-alemão Paracelso introduziu a substância em oposição a fármacos usados nos tratamentos de sarna, sífilis e hanseníase, contou Silvio Fernando Guimarães de Carvalho, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
Mais tarde, em função de seus frequentes e graves efeitos colaterais, houve uma forte oposição ao seu uso por parte das universidades oficiais. “A Faculdade de Medicina de Paris chegou a elaborar um termo excomungando o antimônio e chamando de infernais e envenenadores os médicos que usavam esse produto. A partir de então, [sua utilização] foi proibida na França”, disse Carvalho. De acordo com ele, o antimônio só foi reabilitado quando o rei Luís 14 foi acometido de uma forte cólica intestinal. Após esgotado todo o arsenal terapêutico da época, ele foi curado com o produto.
Sabendo da alta toxicidade do tártaro emético, Gaspar Vianna diluiu-o em soro fisiológico para, posteriormente, injetá-lo no paciente, o que tornou a droga tolerável, embora muito dolorosa, pontuou Benchimol. No episódio da primeira tentativa de tratamento com o tártaro emético, Gaspar Vianna contou com a sorte. “Ele escolheu um paciente da enfermaria da Santa Casa do Rio de Janeiro para fazer o teste. No dia seguinte, ao chegar para fazer a infusão do medicamento, o paciente tinha morrido. Gaspar Vianna faz a necropsia e não encontra nada que justifique a causa da morte. Talvez, se já tivesse aplicado [a droga], a história poderia ter sido diferente, porque ele iria atribuir o óbito ao antimônio”, afirmou Carvalho no seminário.
Benchimol explicou durante o seminário que, em um processo ainda mal documentado pelos historiadores, o terapêutico de Gaspar Vianna foi substituído por uma forma pentavalente menos tóxica de antimonial. “Introduzida em 1922 pelo médico indiano Upendranath Brahmachari para combater o mortífero calazar [como é conhecida a leishmaniose visceral], tornou-se a base para o tratamento das leishmanioses até hoje. Brahmachari levou sozinho os louros pela vitória, e foi inclusive indicado ao prêmio Nobel em 1929”, afirmou.
O cientista morreu em julho de 1914, em decorrência de um incidente ocorrido enquanto trabalhava. Ao realizar a necropsia de um caso de tuberculose pulmonar no Hospital da Santa Casa do Rio de Janeiro, um jato do líquido depositado em uma cavidade torácica do corpo atingiu seu rosto. Em apresentou sintomas da doença e faleceu dois meses depois. “Para Edgar Cerqueira Falcão, somente a descoberta da penicilina teve desdobramentos comparáveis à cura das leishmanioses. Pena que não existisse ainda o antibiótico na época em que Gaspar Vianna infectou-se acidentalmente”, concluiu Benchimol.
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