Fioflix Resenha: Evitável

Publicado em
Madu Negreiros (estágio supervisionado VideoSaúde Fiocruz)
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Mais do que informação, o catálogo da plataforma Fioflix apresenta pessoas e suas histórias. O filme Evitável é um excelente exemplo de uma obra que opta por falar da dor ao invés das suas causas. Não se trata de um documentário expositivo que destrincha assuntos de forma impessoal e informativa. O filme se preocupa em humanizar os números das estatísticas e dar rostos aos conceitos. Não é apenas uma oportunidade de discussão de conceitos de saúde, como também de situações nas quais o sistema falhou com as pessoas que deveriam ser auxiliadas. Aqui, essa falha diz respeito à morte materna e a violência e negligência obstétricas.

Caixas de arquivos. Essa é a primeira imagem que vemos ao assistirmos Evitável. Nas suas lombadas lêem-se "morte materna" e o ano ao qual os arquivos dizem respeito. Mãos abrem uma das caixas para revelar diversos sacos plásticos que abrigam montes de papel cada. Lemos com dificuldade as palavras "ficha confidencial de investigação de morte materna" em um plano desfocado em suas beiradas, como se precisássemos de um esforço a mais para manter a nitidez nos olhos ao tentarmos enxergar as identidades daquelas mortes. O som é despido de qualquer apetrecho artificial, escutamos exclusivamente o que a imagem nos mostra: canetas riscando o papel e folhas sendo manuseadas. Não vemos rostos ou nomes, apenas mãos e pilhas de documento, como se as mortes fossem apenas uma pilha de papel acumulada em uma gaveta. A seguir, uma tela preta nos traz as palavras que explicam do que se trata a morte materna: aquela que ocorre durante a gestação ou 42 dias após o parto, tendo como causa qualquer agravamento causado pela gravidez. Essa é a única explicação informativa que recebemos ao longo do filme.

Depois de sermos bombardeados por alusões a números e estatísticas, acompanhamos pessoas, rostos e histórias, mais especificamente, três histórias de casos de morte materna. Deixamos de assistir a números sendo registrados por canetas para conhecer identidades. Pequenos detalhes de personalidade nos ajudam a colorir a existência de uma pessoa ao invés de um nome em uma ficha de investigação. “A menina que só vivia rindo. Qualquer coisa. Se fizesse assim... e tocasse nela, ela ria. Num tinha tristeza com ela não”. Os pais de Bruna nos ajudam a entender o quanto ela era uma menina feliz e estudiosa, que tinha muitos sonhos pela frente. Não apenas ela, mas também Valdilene e Marília, as outras duas histórias que acompanhamos. Escutamos seus pais contarem em detalhes como foi o dia em que elas partiram, mas também ouvimos como elas eram em vida e vemos seus rostos.

Evitável fala sobre o vazio. Conforme assistimos ao filme sentimos que algo falta. O som é cru e simples. A trilha sonora é inexistente. Existem poucos movimentos de câmera sendo ela majoritariamente estática, embora não seja necessário movimento para preencher o vazio da cena. Não há nada que preencha tanto um ambiente quanto o vazio. Vemos planos abertos dos cômodos das casas que visitamos e, por mais que tenham pessoas ali, eles parecem desprovidos de vida. “Até hoje espero ela em casa e ela não chegou. Só chegou o corpo dela aqui em casa”. Por mais que o corpo de Valdilene tenha voltado para a sua mãe, a sua alma faz falta naquela casa assim como a risada de Bruna faz falta na casa de seus pais. Ouvimos falar sobre suas risadas e almas, mas a sua ausência em cena diz mais do qualquer palavra que possa ser dita.

Por mais que as mães falecidas não estejam em quadro, elas estão presentes em todos os 26 minutos de exibição. Não a vemos em cena a não ser pelas suas fotografias estampadas nas telas dos celulares. As fotos estão presentes em todas as três histórias, nos mostrando como eram aquelas meninas quando eram felizes e vivas. Aqui, a fotografia é um registro de uma pessoa que não existe mais, assim como a memória de uma vida. A mãe de Marília nos mostra uma montagem na qual a filha posa ao lado do seu marido e do seu bebê no seu aniversário de um ano.

“Essa montagem a gente fez pelo celular. No celular ficou bem coladinho o rosto dela com ele, mas na montagem ficou separado. Quando ele completar certa idade, ele vai ver a mãe verdadeira e o pai. Estão os dois aí. E essa montagem pra mim também foi tudo. Porque isso era tudo que ela queria”. Mesmo uma foto que estampa um registro inexistente guarda uma memória, porque representa uma vontade que existiu e uma possibilidade que poderia ter sido.

Assim como explicitado em seu título, o filme aborda acontecimentos que poderiam ter sido evitados. Isso porque todas as mortes foram frutos de descaso, negligência e violência obstétrica. Não ouvimos nenhum desses nomes ao longo do filme, mas não precisamos. Entendemos a sua presença ao entendermos a dor dos que ficaram. "Eu disse: ‘Isso é mentira, porque minha filha entrou aqui viva’. Aí ela: 'Não, mas ela já tinha entrado morta'. Eu: 'Não, ela não entrou morta! Eu estava com a minha filha no carro e vi que ela estava viva. Ela ainda falou comigo'".

Ouvimos a mãe de Bruna nos falar de sua morte com a mesma tristeza que ouvimos a mãe de Marília nos relatar suas últimas palavras: "Mainha, eu vou morrer". As lágrimas que elas seguram ao contar essas histórias não se faz ausente pois desce pelo rosto de quem assiste. "Eu choro, mas não choro para ninguém ver. Pra mim mesma. Não gosto de mostrar a ninguém".

Por mais que a atmosfera seja de tristeza, vemos a felicidade aflorar nas famílias com a presença das crianças. "E se não fosse ele aqui no mundo, ia ser mais difícil. Porque, ela se foi, né? Mas deixou o Enzo para nos alegrar". A mãe de Bruna nos relata o amor que sente pelo neto Enzo assim como a mãe de Valdilene nos fala do amor que sente pelos seus netos: "O maior amor que a gente sente por ela. Só ela que restou… eles".

Vemos os avós brincando com seus netos e percebe-se uma felicidade genuína ali. Vemos sorrisos no presente e lágrimas ao relembrar o passado. É uma felicidade agridoce pois sua existência é sutil e frágil. Ela poderia ser maior e forte com as filhas vivas. Ao ser finalizado, o filme nos exibe seu único dado numérico: 92% dos casos de morte materna poderiam ter sido evitados. O vislumbre de felicidade exposto no filme poderia ser inquebrável caso o evitável tivesse sido evitado. Para assistir Evitável e outros 400 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia, acesse a plataforma Fioflix.