Fioflix Resenha: Xawara e Saúde

Publicado em
Madu Negreiros (estágio supervisionado VideoSaúde Fiocruz)
Compartilhar:
X

A implementação de medidas de saúde pública vai além da busca pela ausência de doenças. O seu verdadeiro objetivo é garantir o bem-estar da população, seja ele físico, mental ou social. A plataforma VideoSaúde - Fioflix compõe um catálogo repleto de filmes que exploram esta temática, dentre eles Xawara e Saúde. A obra explora justamente o tema de saúde pública mas em um contexto específico: a saúde dos povos indígenas, particularmente os yanomami. O próprio título carrega em si a dualidade cultural que permeia os quase 30 minutos de duração deste média metragem documental. O termo Saúde refere-se àquilo que buscamos: o bem-estar, na perspectiva do conceito ampliado de saúde. Escrito em português, assim como escrevo este texto. Já o termo xawara refere-se às epidemias e doenças, porém escrito como os yanomami dizem. Um termo cunhado por eles para descrever o mal estar que o garimpo trouxe para o seu povo. Assim como o seu título, neste documentário os yanomami não são um mero objeto narrativo, mas sim os narradores da sua própria história.

Voando por entre as nuvens. É assim que somos introduzidos às falas de Daniel Yanomami, a liderança indígena cujas palavras costuram a narrativa do filme. Como um pássaro que plana acima do verde intenso da floresta e dos delicados desenhos do rio, deslizamos por esta imagem conforme o escutamos falar, em seu próprio idioma, sobre o mal do garimpo e o bem estar que ele quer para o seu povo. Apenas dois termos são cunhados em português: saúde e comunidade. Por mais que toda a sua fala seja acompanhada de legendas, é apenas isso que precisamos entender. A trilha sonora é tão suave que quase não a percebemos, cria-se um ambiente tão natural quanto o que vemos em tela. As suaves batidas compõem o ritmo que nos guia por entre as diversas dualidades abordadas durante todo o filme. São elas que compõem esta zona cinzenta que, tão translúcida como as nuvens pelas quais voamos, fazem o diálogo entre extremos: lugar e não lugar; comunidade e invasão; chão e céu; ciência e espiritualidade; cultura e resistência.

A partir daqui, acompanhamos o Centro de Operações da Emergência Yanomami. Através de falas, tanto de indígenas quanto de não indígenas, somos ambientados ao que seria a procura pelo bem-estar em um contexto de emergência em saúde pública causada pelo avanço do garimpo. Com uma câmera que passeia por entre a comunidade Yanomami aqui retratada, somos colocados em uma posição de personagens para além de meros espectadores. “Não estamos aqui para doutriná-los com a nossa cultura, mas sim nos adaptar a deles”, é esta fala da enfermeira Railane Lopes que nos faz compreender a importância da inserção da saúde naquele território ao invés de simplesmente levar os doentes para um centro de tratamento fora da comunidade. A presença da comunidade somada aos postos de saúde é uma demanda constantemente reforçada ao longo do documentário, assim como o cuidado que precisa-se tomar para que a linha que separa assistência de invasão não seja ultrapassada. “A gente tem que tomar cuidado e lembrar todo dia que somos hóspedes. A gente tem uma ânsia tão grande de querer ajudar que não percebemos que quando montamos a nossa estrutura, já estamos invadindo.”

Somos ambientados em Boa Vista, por meio de mais um passeio por entre as nuvens. Vemos a cidade banhada pelo rio que corre abaixo de nós. A dualidade entre comunidade e invasão é retratada não somente pela fala explícita, mas também pela sutileza da escolha de imagens. Dois monumentos nos contemplam os olhos: o Monumento aos Pioneiros retrata os primeiros moradores de Roraima, sendo composto por famílias diversas, pecuaristas e, principalmente, indígenas. A câmera traz ênfase ao busto de um homem indígena que compõe a maior parte da estrutura de cimento, preenchendo os olhos com sua imponência. Logo em seguida, a câmera captura a imagem do Monumento ao Garimpeiro, sendo um tanto quanto auto-explicativo: retrata um homem garimpando. Não surpreendentemente, após a exibição destas imagens, muito se é falado sobre o impacto do garimpo nas terras indígenas. Um grande cartaz com os dizeres “Basta de garimpo! Fora invasores!” reside acima de um grupo de indígenas conforme ouvimos sobre o plano emergencial para lidar com a incidência do garimpo e as diversas doenças que foram trazidas como consequência.

Para além de fazer um registro de uma realidade, a presença do filme em si é um elemento relevante para a conquista da saúde, isto porque a saúde indígena não se recupera só no corpo, mas também no território e no espírito. A presença da câmera é dedurada pela interação que ela tem com todos que são filmados por ela, principalmente as crianças. Em um momento, elas observam em um tablet as imagens gravadas pelo drone que sobrevoou os verdes das florestas. Elas são curiosas com o cinema que, por sua vez, é uma maneira de criar outras formas de socialização. Recuperar o bem estar e, por consequência, o bem viver, passa por outras práticas, pois implica estar feliz. A saúde ultrapassa a não-doença, ela diz respeito ao bem-estar da comunidade como um todo. Por isso a importância da integração entre comunidade e postos de saúde.

A presença indígena não se dá apenas como eixo temático do documentário. Esta história não é apenas sobre eles como também é contada por eles. Além das narrações feitas pela liderança indígena Daniel, o filme conversa com diversos profissionais que assumem espaços e tomam o controle da narrativa. “A gente tem uma sensibilidade muito maior do que as outras pessoas que atuam aqui porque parente entende parente, indígena entende indígena.” Dentre médicas, antropólogas e gestores de saúde, a presença indígena ultrapassa a posição de paciente. Mesmo a presença da câmera e a existência do filme são justificadas pelas palavras de Daniel: “É para vocês fazerem coisas boas para minha comunidade que eu estou fazendo essa gravação. Quero que você faça todos nos ouvirem porque nós somos yanomami”.
Xawara e Saúde ultrapassa o simples registro documental de uma realidade de doenças. Através de suas imagens honestas e representações cruas, assistimos uma história contada por diversos narradores.

Vemos o povo indígena falar, não apenas de sua própria dor, como também da beleza de sua cultura e a importância de sua comunidade “Assim como os não-indígenas que querem cuidar de nós, nós yanomami não queremos ver imagens de nosso sofrimento. Quando nos pintamos, quando nós ficamos bem bonitos, se estivermos usando nossas penas de rabo de arara, somente assim eu gostaria que vocês nos filmassem”. Em seus minutos finais, o documentário é registrado pelas crianças dessa comunidade. As vemos manuseando os equipamentos de gravação, registrando a si mesmas e seus costumes. Tomando controle da voz que, por muitas vezes, foi calada, elas finalmente guiam a sua própria narrativa e registram o seu próprio povo. Para assistir Xawara e Saúde e outros 400 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia, acesse a plataforma Fioflix.