Fioflix Resenha: Sangro

Publicado em
Madu Negreiros (estágio supervisionado VideoSaúde Fiocruz)
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Além de filmes gravados pela lente de uma câmera, a Fioflix também possui um vasto catálogo de animações. Este formato de filme possibilita que coisas e conceitos que não podem ser observados a olho nu e, portanto, gravados, ganhem vida - como é o caso do filme de hoje. Em Sangro, o espectador mergulha na sensação do que é ser uma pessoa HIV positivo. Diferente de um produto documental em que se gravam relatos e registram situações, esta animação ilustra sentimentos que não poderiam ser capturados por uma simples câmera. Ela representa uma experiência majoritariamente interna que só pode ser sentida, o que acontece conosco quando a assistimos: nós sentimos. O curta-animado não precisa de mais de sete minutos para ser profundamente denso, repleto de detalhes e complexidades. A sensibilidade da animação toca o coração de quem assiste, bombeando emoções que correm pelas nossas veias e permanecem para sempre na nossa corrente sanguínea. Sangro nos marca tão profundamente quanto uma mancha de sangue e é tão relevante para a vida quanto aquilo que faz nosso coração bater.     

Desenho de uma cobra enrolada numa árvore.

 

Sangro não começa com uma tela preta, mas sim com folhas beges de um livro e o som de respiração. O título estampa o papel em uma tinta vermelha, tão intensa que é como se sangrasse na nossa frente. Sequências de textos e ilustrações de livros didáticos a respeito do corpo humano passam frenéticos pela tela. As páginas são borradas com manchas vermelhas e o som é de páginas sendo folheadas, como se alguém as estudasse e sangrasse por cima das palavras. “Pensei que a esta hora eu já estaria morto” é a primeira frase que ouvimos. Depois dela, segue-se um texto-relato do nosso narrador a respeito da sua experiência com HIV. As ilustrações e textos dão lugar à um corpo deitado na água com vermelho ao seu redor. Ele afunda e deixa resquícios de vermelho por onde passa. O corpo se encolhe em posição fetal e, ao dizer que “Tudo começou quando eu descobri que vivo com HIV”, explode em rubras plaquetas, nos deixando em um momentâneo silêncio que é quebrado pelo fogo. O papel bege tem suas bordas tomadas pelas chamas e queima até sumir.

O fogo dá lugar ao quadro O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch. A partir desse ponto, o filme o utiliza como plano de fundo, assim como o papel bege. À primeira vista, não parece que esta escolha diz muito, mas uma curta pesquisa nos revela outros níveis de profundidade. O quadro é de um tríptico - conjunto de três pinturas unidas em 3 painéis - no qual são representados, respetivamente, o Jardim de Éden, o Jardim das Delícias Terrenas e o Inferno. É uma obra que aborda o pecado, a luxúria e a dualidade entre o bem e o mal. A sua utilização aqui é muito bem aplicada, por mais que em nenhum momento seja explicada. Neste primeiro momento, o fogo deu lugar ao Inferno. Vemos representações estáticas de torturas e criaturas fantásticas. No meio delas, surge uma animação de uma criatura em movimento: uma cobra. Uma escolha, também, muito bem aplicada e, em nenhum momento, explicada. Ao longo do filme, a animação se sobrepõe aos ambientes retratados na obra de Bosch. “Me deixa em paz a ideia da morte”. A cobra - símbolo bíblico do pecado - rasteja pelas cenas de tortura do Inferno até chegar em um campo verde. Analisando o quadro de Bosch, é possível perceber que este verde é referente ao Jardim de Éden. Nele, um bebê - símbolo de pureza e inocência - adormece em uma manjedoura. “Até me acalma saber que a angústia pode acabar quando eu quiser”. A cobra enrola-se no bebê e o abocanha com suas prezas. Assim, o pecado inicial mata a inocência.

Embora o quadro seja muito marcante no decorrer da narrativa, o amontoado de folhas amareladas também parece dizer muito. Diferente do quadro – que fala muito sobre estigmas sociais e o olhar da sociedade em relação ao HIV – as folhas parecem falar sobre o narrador. Elas são páginas de um livro recicladas e rabiscadas. Com traços vermelhos e pretos, as animações se desenvolvem de forma livre e abstrata, como se fossem a representação da alma do narrador. É para elas que voltamos quando ele diz pensar em sua mãe, como se os pensamentos destrutivos acerca do que a sociedade espera dele se esvaíssem quando ele pensa em quem o ama. Assim, ele volta para si mesmo. Dessa vez, vemos o que está para além das bordas das páginas. Um livro envelhecido e aberto em cima de uma mesa de madeira tem suas páginas folheadas. São nelas que a animação ocorre: Ao literalmente abrir a cabeça, ele tem seu cérebro cortado ao meio e dele saem ideias. A sua percepção de si mesmo e o mar que o afoga. Os movimentos ocorrem de maneira fluida, com os objetos se transformando em outros e, então, no narrador. “Viver é o que me cura, mas eu morri, isso é verdade.” Ao dizer esta frase, ele se transforma em pássaro e voa para fora do enquadramento da página. “Senti meu corpo definhando e lutando contra ele mesmo”, ele diz ao ter o cérebro cortado com uma faca, como se o intuito fosse desligá-lo para sempre. “Seria essa a minha história? Não.” Uma mão, em stopmotion, fecha o livro.  

De volta ao quadro de Bosch, a representação animada do narrador deita em uma poça de lama. Analisando o quadro, pode-se perceber que este enquadramento é referente ao Jardim das Delícias Terrenas, onde ocorrem atos de luxúria e participantes sem culpa.  É interessante que esta parte do quadro seja abordada quando o narrador fala especificamente do estigma e das violências verbais que sofreu dentro do ambiente hospitalar. “Eu lembro da forma agressiva que as enfermeiras me olhavam enquanto repetiam que eu deveria ter me cuidado”. Vemos representações estáticas de atividades sexuais presentes no quadro, como se isso fosse o que todos achavam que ele era. “Me senti o próprio vírus: parecia que respirar contaminava tudo em volta”. Assim, sua representação animada sai da poça de lama e caminha até a parte do quadro que representa o Jardim de Éden, deixando um rastro de pegadas por onde passa.  

No Jardim, ele vai até um lago e bebe de suas águas azuis como se bebesse a cura, a aceitação e o perdão para si. “Hoje em dia a medicação deixa a carga viral indetectável e vida que segue”. Neste momento, é como se ele se curasse. A cobra, então, volta rastejando pelo quadro. Ela encara a representação animada do narrador. “O HIV fez com que eu confrontasse a minha finitude”. A cobra se encolhe em si mesma e abre um buraco no quadro de Bosch. O narrador o rasga, encontrando as páginas amarelas e mergulha novamente em si mesmo. “Hoje eu estou em paz. Tá tudo bem. O que é, é”. E então, o narrador evapora em uma nuvem de poeira vermelha e nos deixa com um turbilhão de sentimentos que nosso coração bombeia para todas as extremidades do nosso corpo. “Sinta agora as batidas do SEU coração”. Para assistir a Sangro e outros 500 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia, acesse a plataforma Fioflix: Vídeo Saúde