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10/08/2006

Frigotto aborda o livro Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo

Fernanda Buarque de Hollanda


Um dos autores do livro Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo, recentemente publicado pela Editora Fiocruz, o filósofo e educador Gaudêncio Frigotto foi também um dos idealizadores da proposta pedagógica da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), uma unidade da Fiocruz. Presente num dos encontros marco na história da Escola, o seminário Choque teórico, realizado em 1987, Frigotto esteve na EPSJV entre os dias 3 e 5 de maio últimos, durante o seminário homônimo ao livro, que reuniu intelectuais de renome nacional e internacional. O educador aborda, nesta entrevista, as temáticas que apresentou durante o evento, como a visão ontocriativa do trabalho, e avalia a contribuição da publicação e do seminário para discussão sobre a educação escolar brasileira atual.


Assim como explicita em seu artigo, "o trabalho como princípio educativo não é em Marx e Gramsci uma técnica didática ou metodológica no processo de aprendizagem, mas um pressuposto ontológico e ético-político no processo de socialização humana". Nesse sentido, como poderíamos perceber uma das diretrizes apontadas durante o seminário de que a educação escolar deve ter o trabalho como princípio educativo dentro da lógica capitalista, na qual ele é tido como um meio de produção de alienação e de acumulação do capital por parte dos detentores dos meios de produção?


Gaudêncio Frigotto: Nós podemos encarar o trabalho como princípio educativo quando entendermos a visão ontocriativa. Não existe vida humana sem transformação de natureza, sem ação-trabalho. Trabalho escravo, alienado, livre, de colaboração, enfim, sempre vai existir. O trabalho como princípio educativo é uma compreensão, que Marx e Engels trouxeram, de que, como todo ser humano precisa de metabolismo entre ele e a natureza, é fundamental que desde a infância a criança e o jovem socializem a idéia do direito e do dever do trabalho. Mesmo dentro do capitalismo, o trabalho não é pura negatividade. O trabalho é uma categoria ontológica anterior ao capital e vai ser posterior a ele. Por isso que Marx via mais valor na burguesia enquanto traço histórico do que na aristocracia e nas sociedades em que o escravo trabalha para o senhor, enquanto este se dedica apenas às atividades do intelecto. Ele via na burguesia uma classe revolucionária porque ela trabalha. Portanto, os autores que acreditam que o trabalho como princípio educativo não pode existir numa sociedade capitalista enxergam-no a partir de uma visão determinista, porque este raciocínio leva a crer que o capitalismo será eterno. Mas ele tem contradições e se assim fosse não teria sentido a gente lutar para tornar menos alienado o trabalho.


De acordo com o seu texto não seria plausível separar a técnica, a tecnologia e a ciência, uma vez que esta separação permite ao capitalismo uma segmentação do trabalho, que limita ou impede o trabalhador de compreender a unidade destas dimensões do trabalho. Como podemos pensar esta situação no caso da educação profissional no Brasil?


Frigotto: Quando coloco que técnica, tecnologia e ciência, cada uma tem sua particularidade, mas elas são unidades do diverso, isso significa que no processo do ser humano elaborar formas de produzir os seus meios de vida e responder a suas necessidades, ele vai produzindo determinadas técnicas e vai aperfeiçoando determinados processos. Como os gregos diziam: o ser humano pensa porque tem mãos. Ele ao fazer, tem que pensar. A técnica tende a ser um aperfeiçoamento dentro da mesma linha de processo produtivo, de um determinado estágio técnico; a tecnologia é quando há uma inovação qualitativa; e a ciência é uma forma sistemática de buscar tanto inovações técnicas quanto tecnológicas, mas também se alimenta de processos técnicos e tecnológicos. O que quero dizer é que não podemos fazer uma análise linear desse processo. O que acontece com a educação profissional é que na sociedade capitalista a educação tende a ter duas funções: adequar a força de trabalho às funções da economia e produzir ideologicamente e politicamente uma consciência alienada. Desde que o capitalismo surgiu houve o discurso da igualdade em todos os campos, mas na verdade ele só pode existir e prosperar na desigualdade. Então nós vamos ter sistemas duais da educação: um que vai preparar aqueles que vão ser dirigentes, numa escola geral, clássica e longa; e outro pra quem tem pouco tempo pra estudar, pois tem que enfrentar o duro exercício do trabalho. O grande drama da história da educação brasileira é que, como mostra o livro Fundamentos da educação escolar no Brasil contemporâneo, temos um capitalismo de marca mais violenta, em que a educação profissional está dissociada da educação básica. Aqui o adestramento é ainda mais perverso, pois não existe sociedade que cobre a educação básica. Então a força de trabalho é semi-letrada e adestrada.


O senhor participou do seminário Choque teórico, em 1987, considerado um importante encontro para a construção do projeto pedagógico da Escola. Após este evento, houve grandes transformações políticas, econômicas e sociais no Brasil. Quais as mudanças com relação a discussões e debates do seminário Choque teórico para o Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo?


Frigotto: O seminário Choque teórico teve características muito peculiares e conjunturais na sociedade brasileira. O encontro ocorreu em plena década de travessia da ditadura militar para a democracia, quando havia uma potente crítica presente na sociedade, especialmente entre os educadores, e uma idéia de recuperar o que a ditadura cerceou. Nesse contexto, os cursos de pós-graduação começam a incorporar um referencial mais crítico, histórico e dialético, com aportes marxistas, de Gramsci e de Althusser. Então, se começa a pensar uma proposta de educação como direito, de uma educação básica, omnilateral, que leve em conta todas as dimensões da criança, do jovem e do adulto também. Ou ainda uma educação politécnica, que é aquela que não dá a fórmula, mas a base do entendimento das coisas: da física, da química, da eletricidade; mas também da sociedade, dos seres humanos, da psicologia, da arte e da cultura. O Choque teórico serviu para nós nos colocarmos de acordo com a proposta pedagógica sobre a qual a Escola Politécnica se desenvolveria, que é o próprio conceito de politecnica, educação democrática, unitária. Era uma disputa política, mas com a idéia de tornar isto uma generalização. Então a Escola teve um poder emblemático. Agora, era um debate restrito aos educadores, filósofos e sociólogos, que tinham a mesma perspectiva. Hoje, olhando pelo retrovisor, vejo que faltaram naquele debate elementos para analisar que tipo de capitalismo e de burguesia brasileira nós tínhamos, que nega até a educação ao nível capitalista. Já o seminário de hoje foi realizado numa outra conjuntura. Aquelas idéias da travessia dos anos 80 foram violentadas não por um golpe militar, mas por um golpe da burguesia para vender o país. As reformas do governo Collor pra cá, justamente no governo Fernando Henrique Cardoso, rifaram o Brasil. Este contexto nos obrigou a pensar que o tecido onde a gente disputa uma educação para a classe trabalhadora, que não seja para aguçar o olho e adestrar a mão, é muito mais duro, porque se trata de uma sociedade cuja burguesia é a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda, como diz Chico de Oliveira. E mais que isso: é um projeto orgânico de um capitalismo dependente e associado, baseado no desenvolvimento desigual e combinado.


Em que medida acredita que a realização de eventos como o seminário Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo e a publicação do livro homônimo podem contribuir para a construção de uma nova pedagogia da hegemonia, como configura-se uma das diretrizes apontadas pelo documento síntese que está sendo finalizado pelos organizadores?


Frigotto: Uma das conclusões que o livro traz é a de que existe uma luta contra-hegemônica instalada no Brasil. Sempre existiu, e que bom! Só que ela não tem expressão quantitativa e por isso também pouco qualitativa. Aliás, duplamente não qualitativa: uma porque se nega à grande parte da sociedade brasileira o direito elementar de letrar-se. Outra porque poucas mentes e corações percebem este "ornitorrinco", do qual fala Chico de Oliveira (no livro Crítica à razão dualista - O ornitorrinco), ou seja, este mostrengo social. Então, como Miriam (Limoeiro, uma das autoras do livro Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo) coloca, o papel do conhecimento crítico e da educação básica que dê a base para participar, para emancipar, para perceber, para produzir sujeitos coletivos, é crucial. Sendo assim, o seminário tem um sentido germinal e um sentido de disseminação extraordinário. Não só pela audiência que teve. Mas porque ele tem um instrumento potente: um livro. Um livro bem feito é a extensão melhor do que pode existir no campo da educação. Só pra dar uma idéia, esta publicação acabou de sair e eu já a utilizei para um concurso, em que tive de dar uma aula, onde havia 60 pessoas me assistindo e, com certeza, pelo menos umas 20 vão ler o livro. Enfim, ele pode atingir dez, 20, 50 milhões de pessoas. E como é um livro denso mas com textos que não são longos, ele tem um potencial enorme. Então, cumpre um papel contra-hegemônico. É a batalha das idéias. É a batalha de leitura, na verdade. Como diz o Veríssimo, ler a realidade é complexo. Então é um instrumento pra leitura da realidade em aberto. Agora mesmo encerrei um curso (de pós-graduação em educação profissional em saúde, na EPSJV) em que todos os alunos têm este livro e eu disse a eles: o compromisso ético-político de vocês é ler o livro e entender a sociedade brasileira.

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