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23/09/2013

Fundação já embarcou no 'trem bala' da nanotecnologia

Fernanda Marques


Com uma variedade de aplicações inovadoras nas áreas da saúde, a nanotecnologia tem sido alvo de uma série de iniciativas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico na Fiocruz. Considerada um tema prioritário para a instituição, a "nano" foi pauta de uma recente reunião, da qual participaram representantes de várias unidades da Fundação. Como resultado do encontro, formou-se um grupo de trabalho para subsidiar a construção de um programa institucional integrado em nanotecnologia. “O objetivo é mapear as competências da Fiocruz em nanotecnologia, de modo a identificar os principais desafios, estimular a sinergia entre os diferentes projetos e prover a infraestrutura adequada para fazê-los avançar”, explicou o vice-presidente de Inovação e Produção em Saúde, Jorge Bermudez. “Nossa proposta consiste em um programa estruturante, da pesquisa básica à inovação e produção, englobando, inclusive, as tecnologias humanas e sociais”, resumiu o vice-presidente de Pesquisa e Laboratórios de Referência, Rodrigo Stabeli.

A iniciativa inclui projetos em sistemas diagnósticos, biossensores, vacinas e diferentes tecnologias terapêuticas – por meio de nanoestruturas, é possível que um medicamento seja gradualmente liberado no organismo, possibilitando maior controle da dose, ou seja direcionado a um órgão ou tecido específico, reduzindo efeitos colaterais

 

Stabeli é o coordenador de uma proposta da Fiocruz recentemente aprovada para integrar o Sistema Nacional de Laboratórios em Nanotecnologias (Sisnano), instituído pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A estratégia do Sisnano não é criar novos laboratórios, mas promover um salto qualitativo em infraestruturas já existentes, com foco na atuação multiusuário, permitindo que variados grupos tenham acesso às facilidades necessárias a pesquisas mais robustas. A proposta da Fiocruz – a única associada à saúde no âmbito do Sisnano – está ancorada na Fiocruz Paraná, para onde poderão convergir grupos de outras unidades e mesmo de outras instituições.

O Sisnano é uma das estratégias que compõem a Iniciativa Brasileira de Nanotecnologia (IBN), lançada em agosto deste ano pelo MCTI com o objetivo de criar, integrar e fortalecer atividades governamentais para promover o desenvolvimento científico e tecnológico em nanotecnologia. O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp, e o secretário de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do MCTI, Álvaro Prata, participaram da cerimônia de lançamento da IBN. Na ocasião, Prata afirmou que estão previstos investimentos na área de mais de R$ 400 milhões em 2013 e 2014. Segundo ele, muitas empresas acessam os laboratórios e têm uma relação praticamente pessoal com os dirigentes, mas, a partir da IBN, essa relação vai ser institucionalizada.

O diretor do Instituto Carlos Chagas (ICC/Fiocruz Paraná), Samuel Goldenberg, e Rodrigo Stabeli estiveram presentes no lançamento. “Trata-se de um passo importante para a política nacional de tecnologia, que congrega pesquisas no campo da nanotecnologia”, afirmou Stabeli. Ele destacou, entretanto, que não existe no setor saúde um centro de tecnologia para avaliar e dar encaminhamento às pesquisas em nano. “Montamos um grupo que apresentará uma proposta para contemplar soluções na área”, ressaltou.

O objetivo é constituir uma plataforma de nanobiotecnologia em um ambiente pró-inovação, voltado ao desenvolvimento de produtos para o SUS e para a redução das iniquidades brasileiras, que atendam às demandas sociais e, ao mesmo tempo, fortaleçam o Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS). A Fiocruz Paraná foi escolhida para sediar as ações porque já tem bastante experiência, sobretudo na área de diagnósticos. Ela desenvolve, por exemplo, chips capazes de detectar, simultaneamente, diferentes moléculas associadas a agentes causadores de doenças, utilizando pequenas quantidades de amostra e mesmo que as tais moléculas estejam presentes em baixa concentração. Esses testes moleculares – como aquele que detecta os vírus da Aids e da hepatite C, produzido no Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) desde 2009 – são empregados, por exemplo, no controle de qualidade do sangue na hemorrede brasileira. Há projetos também associados à Rede Cegonha, para o diagnóstico de doenças que devem ser controladas no pré-natal, e à vigilância sanitária, para a detecção de contaminantes, mesmo em níveis mínimos, na água, em alimentos e em outros produtos.

Entretanto, a Fiocruz já tem planos de avançar ainda mais com o empreendimento do Nanosus, também edificado no Paraná. Ele ocupará uma área de 8 mil metros quadros, com uma obra estimada em R$ 42 milhões e equipamentos no valor de R$ 26 milhões. Destaca-se, entre outros, um aparelho para ressonância de superfície plasmônica com moléculas complexas, utilizado, por exemplo, na certificação de qualidade de produtos – o grupo da Fiocruz é um dos poucos no mundo que dominam esta técnica.

As novas instalações – versáteis para atender a uma ampla variedade de trabalhos – funcionarão como uma espécie de ponte entre a pesquisa e a indústria. Por meio de editais, internos e externos à Fiocruz, serão selecionados projetos já em etapa avançada, isto é, com resultados promissores não só em laboratório, mas também em ensaios pré-clínicos e clínicos iniciais. “Os editais terão um efeito indutor de iniciativas em nanobiotecnologia, na medida em que grupos de pesquisa contarão com um canal para a continuidade de estudos experimentais que obtiveram êxito”, afirma Stabeli.

Isso inclui projetos em sistemas diagnósticos, biossensores, vacinas e diferentes tecnologias terapêuticas – por meio de nanoestruturas, é possível que um medicamento seja gradualmente liberado no organismo, possibilitando maior controle da dose, ou seja direcionado a um órgão ou tecido específico, reduzindo efeitos colaterais. “Com o Nanosus, não queremos ‘reinventar a roda’. Selecionaremos projetos que já atingiram um ponto onde é necessário o pré-escalonamento, tanto para verificar a viabilidade técnico-operacional da produção industrial quanto para expandir os ensaios clínicos, paralelamente a prospecção e a formalização de parcerias com empresas públicas e privadas”, adianta Stabeli. Esse tipo de esforço ainda é raro no Brasil. “O Brasil não tem infraestrutura para desenvolvimento tecnológico em ‘nano’ aplicada à saúde. Nas parcerias que buscamos com outras instituições de pesquisa e mesmo com empresas, não encontramos essa infraestrutura. Ainda existe uma dependência muito grande em relação a equipamentos e insumos”, avalia Mário Moreira, da Fiocruz Paraná.

A previsão é de que o Nanosus comece a ser construído em março de 2014 e esteja concluído em três anos. “Enquanto isso, daremos seguimento a trabalhos já existentes, como os da Rede Cegonha e dos hemocentros, e buscaremos sistematizar uma cooperação mútua entre as diferentes iniciativas que estão dispersas nas unidades”, propõe Stabeli. E tais iniciativas da Fiocruz podem ser encontradas do Sul ao Norte do país, tornando-se ainda mais abrangentes pela participação institucional em vários INCTs e diversas outras colaborações em rede. Na Fiocruz Rondônia, insumos da biodiversidade amazônica estão sendo testados contra doenças negligenciadas – leishmaniose e malária –, em formulações nanoencapsuladas. Como um dos candidatos a medicamento é pouco frequente na natureza, a continuidade da pesquisa depende fortemente do pré-escalonamento da produção, para que se obtenha quantidade suficiente do composto para estudo.

Também o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) e Bio-Manguinhos apresentam projetos relacionados à nanotecnologia. De acordo com Helvécio Rocha, de Farmanguinhos, quase um quinto do mercado em "nano" corresponde a produtos farmacêuticos – e já existem vários deles disponíveis. Embora muito se fale dos sistemas "inteligentes" ou autorregulados para liberação e direcionamento de fármacos, existem aplicações menos complexas, porém igualmente importantes. Uma alternativa é a produção de nanopartículas ou nanocristais do fármaco com o objetivo de aumentar sua dissolução e criar novas formas de administração. Algo semelhante foi feito em Farmanguinhos, onde se desenvolveu um medicamento antirretroviral para uso pediátrico: o comprimido é dissolvido em pequena quantidade de água para ser ingerido mais facilmente.

Outro projeto envolvendo a nanotecnologia tem como objetivo mascarar o sabor amargo de um xarope infantil contra a esquistossomose, o praziquantel, e, assim, facilitar a adesão das crianças ao tratamento dessa doença negligenciada. Em colaboração com a Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe/UFRJ), o trabalho está sendo feito pela pesquisadora Laís Bastos, que começou os estudos em Farmanguinhos e, atualmente, integra o Centro de Desenvolvimento de Tecnologias em Saúde (CDTS/Fiocruz). “Em Bio-Manguinhos, alguns programas que tinham parado de avançar estão retornando ao portfólio graças à nanotecnologia, que pode oferecer novos caminhos e soluções para as pesquisas”, afirma Eduardo Ruback. Nesse sentido, a "nano" pode contribuir para uma vacina nasal contra leptospirose e a melhor apresentação da vacina contra febre amarela.

O Laboratório de Inflamação do IOC é outro setor da Fiocruz onde se desenvolvem pesquisas relacionadas à nanotecnologia, mais especificamente sobre novas terapias para doenças inflamatórias pulmonares – inclusive, no último concurso, o laboratório recebeu uma nova pesquisadora especializada em "nano". Estudos têm mostrado, por exemplo, que nanopartículas de ouro podem ajudar no controle da asma. “As vias aéreas terminais representam o maior volume do pulmão e a região mais periférica do órgão, onde ocorrem as obstruções. As nanopartículas têm uma rápida e profunda penetração nos tecidos, o que facilita o acesso e a ação nessas vias, além do uso de uma menor quantidade de fármaco”, diz Marco Aurélio Martins, do IOC.

Entretanto, justamente por esta importante capacidade de penetração, as nanopartículas também podem causar efeitos tóxicos. A "nano" pode trazer melhorias, mas também riscos. É preciso estabelecer parâmetros e metodologias para análises toxicológicas e controle de qualidade de nanoprodutos e nanoprocessos. Nesse sentido, o INCQS participa da Rede Nanotox, junto com Anvisa. Essas discussões ainda precisam avançar e amadurecer bastante e, como uma forma de contribuição, o periódico Vigilância Sanitária em Debate, editado pelo INCQS, está produzindo um número temático especial dedicado à nanotecnologia, prevista para novembro próximo.

No âmbito internacional, a OMS compôs um grupo para definir diretrizes de proteção dos trabalhadores contra potenciais riscos dos nanomateriais manufaturados. Um pesquisador da Ensp, William Waissmann, foi convocado para integrar este grupo. Waissmann – que chama atenção para a necessidade de maior engajamento público e divulgação científica sobre a nanotecnologia – tem atuado nas áreas de saúde do trabalhador, toxicologia, ambiente, governança e regulação. “Regular não é colocar entraves ao desenvolvimento. Pelo contrário: um desenvolvimento atento às questões regulatórias se revela na qualidade do produto final, que inspira confiança e tem credibilidade junto ao mercado consumidor, inclusive para exportação”, analisa.

Se existe um dilema em relação aos potenciais riscos da ‘nano’, ele pode se converter em oportunidade. “Devemos investir no emprego da ‘nano’ para reforçar tecnologias ‘verdes’”, propõe Waissmann. “O Brasil já está muito atrás para começar a fazer igual a todo mundo: devemos investir em produtos verdadeiramente com diferencial”, aposta.

Um importante subsídio para o desenvolvimento de um produto inovador consiste em recorrer às informações das patentes. Quem faz o lembrete é Celeste Emerick, da Gestec. “Por um lado, o que já caiu em domínio público pode ser aproveitado. Por outro, não vale a pena investir naquilo que já existe e está protegido por patente. E, é claro, o que está sendo desenvolvimento pela Fiocruz precisa ser resguardado, com atenção especial para a formalização das parcerias e a gestão do conhecimento”. Levantamentos mostram que as patentes em "nano" estão concentradas nas mãos de um pequeno número de empresas multinacionais.

O primeiro balanço após a reunião é de que não há tempo a perder. Segundo o assessor Jorge Costa, uma proposta inicial – para atender às necessidades mais imediatas e aproximar as diferentes iniciativas em "nano" da Fiocruz – seria a construção, no campus de Manguinhos, de um espaço multiusuário, com uma ampla gama de facilidades de pesquisa. Nesse contexto, conforme sinaliza Wim Degrave, o PDTIS já tem uma boa experiência acumulada na estruturação de plataformas para multiusuários e no fortalecimento do trabalho em rede. Trabalho este que depende, fundamentalmente, da captação e capacitação de recursos humanos para PD&I em ‘nano’. “Não podemos perder o bonde – ou melhor, o trem bala – da nanotecnologia”, brinca Stabeli.

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