18/09/2017
Há dois anos, os estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) pediram ao secretário geral da entidade que preparasse um informe sobre a globalização e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, por acreditar que, embora a globalização pudesse ter contribuído para algum crescimento econômico, certamente não havia cumprido sua promessa de fomentar um crescimento equitativo, nem um desenvolvimento sustentável em escala universal. A resposta da Secretaria Geral chegou agora, na forma do documento Cumplir la promesa de la globalización: promover el desarrollo sostenible en un mundo interconectado (A/72/301), para ser apreciado na 72ª Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida neste mês de setembro de 2017, na sede da organização, em Nova York.
Já faz quinze anos que escrevi meu primeiro artigo sobre globalização e doença, em 2002, seguido de outro mais completo, em 2007, sobre globalização, pobreza e saúde, publicado em português, inglês e espanhol, dado o interesse que o tema passara a despertar entre profissionais da saúde.
O fenômeno da globalização não é novo, pois há mais de dois séculos afeta povos e sociedades. A velha globalização, representada pela expansão colonialista da Europa e os negócios por via marítima entre as nações, teve repercussões econômicas e sociais importantes, positivas e negativas, sobre os novos territórios alcançados, bem como sobre a própria sociedade europeia. Mais recentemente, contudo, nas décadas compreendidas na virada dos séculos 20 e 21, deparamo-nos com uma nova globalização, profunda e veloz, que cobre agora praticamente todos os aspectos da vida humana.
Para a maioria dos autores, a globalização recente é um processo econômico, social e cultural estabelecido nas duas ou três últimas décadas do século 20 e primeira do século 21, cujas principais características incluem, em escala nunca antes alcançada:
· crescimento do comércio internacional de bens, produtos e serviços;
· transnacionalização de megaempresas;
· livre circulação de capitais, sem qualquer regulação;
. inédita concentração da renda;
· privatização da economia e minimização do papel dos governos e dos Estados-nação;
· queda de barreiras comerciais protecionistas e regulação do comércio internacional, segundo as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC);
· facilidade de trânsito de pessoas e bens entre os diversos países do mundo; e
· expansão das possibilidades de comunicação, pelo surgimento da chamada sociedade da informação e da facilidade de contato entre as pessoas devido ao aparecimento de diversos instrumentos e ferramentas, entre as quais a internet.
Inúmeros autores, comissões e organizações têm sido críticos desse processo. O breve século 20, denominação cunhada pelo historiador Eric Hobsbawm para descrever o século recém-findo, trouxe, segundo o admirável autor, uma extraordinária “revolução nos transportes e nas comunicações, que praticamente anulou o tempo e a distância”. Essa imensa aproximação entre culturas e economias tão desiguais faz com que “o globo seja agora a unidade operacional básica, e unidades mais velhas como as economias nacionais, definidas pelas políticas de Estados territoriais, fiquem reduzidas [apenas] a dificuldades para as atividades transnacionais”.
Já em 2004, a Comissão Mundial sobre as Dimensões Sociais da Globalização, instituída pela Organização Internacional do Trabalho, insistia que “o processo de globalização atual está produzindo resultados desiguais entre os países e no interior dos mesmos. Está criando riquezas, mas são demasiados os países e as pessoas que não participam dos benefícios [...]. Muitos deles vivem no limbo da economia informal, sem direitos reconhecidos e em países pobres, que subsistem de forma precária e a margem da economia global. Mesmo nos países com bons resultados econômicos muitos trabalhadores e comunidades têm sido prejudicados pelo processo de globalização”.
A Comissão alertava, ainda, que “tais desigualdades globais são inaceitáveis do ponto de vista moral e insustentáveis do ponto de vista político”. E insistia na “falta de equidade nas regras globais em matéria de comércio e finanças e nas repercussões desiguais que tem sobre os países ricos e pobres”, assim como na “incapacidade das políticas internacionais atuais para dar resposta aos desafios impostos pela globalização”.
A Comissão The Lancet – Universidade de Oslo sobre Governança Global e Saúde (2014), da qual com muita honra fiz parte, atribui as origens políticas das iniquidades em saúde vigentes nos países às profundas assimetrias e desigualdades existentes na atual governança global, uma das maiores heranças do processo de globalização injusto, excludente e ecoagressivo que vive o mundo contemporâneo.
O informe da Secretaria Geral apresentado à AGNU 2017 não tem a contundência do trabalho da Comissão de quase 15 anos atrás, nem toca nas feridas apontadas no informe da Comissão Lancet. Limita-se a registrar as tendências atuais de globalização e de interdependência, simplificada em três megatendências: mudanças na produção e mercados de trabalho, rápidos avanços da tecnologia, e a mudança clima, bem como as suas consequências para a promoção do desenvolvimento sustentável. O relatório descreve as estruturas políticas a nível nacional, regional e global que abordam os problemas relacionados à globalização e procura detalhar a função reguladora das Nações Unidas e outras organizações multilaterais, para responder a esses problemas. Com isso, refere-se à necessidade de marcos institucionais e normativos mundiais e de enfoques multilaterais inclusivos, transparentes e efetivos para gerir um processo de globalização que venha a beneficiar todos os países e não deixar ninguém para trás (mantra da Agenda 2030).
Ou seja, em tempos nos quais já se reconhece que desde os anos 1990 a economia política internacional desenvolve-se nos marcos da hiperglobalização, que gerou progresso concentrado, mas também imensas assimetrias, e que a globalização sem mecanismos de governança e regulação adequados gera desequilíbrios que a tornam insustentável, as propostas apresentadas no documento são genéricas e tímidas.
Como alerta Alícia Bárcenas, secretária executiva da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], “o atual contexto, marcado pelo enfraquecimento do multilateralismo, o retorno do protecionismo e o aumento de movimentos políticos extremistas, diminui os avanços de tal consenso global [da Agenda 2030 e ODS], apresenta um grave desafio para a economia mundial e coloca em risco o cumprimento dos 17 ODS”.
O desafio seria, então, recuperar a agenda de cooperação multilateral que se encontra hoje no limbo entre a hiperglobalização, o ultraneoliberalismo e o unilateralismo emergente e estabelecer mecanismos de governança global e regulação da globalização – particularmente quanto à regulação das multifacetadas atuações do capital financeiro internacional – que a remetam a um compromisso de promoção da equidade e do desenvolvimento sustentável.
*Diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz)
O artigo foi originalmente publicado (15/9) no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz)