Início do conteúdo

02/05/2007

Gripe aviária estimula reflexão e pensamento crítico


Desde 2003, quando foi notificado o primeiro caso de influenza ou gripe aviária causada pelo vírus H5N1 em seres humanos, as autoridades nacionais e mundiais de saúde estão em alerta para uma possível pandemia de gripe que, a exemplo da chamada "espanhola", mataria milhões de pessoas em todo o mundo. As informações, vindas das mais variadas fontes, são muitas e, na maioria das vezes, contraditórias. Há uma tendência ao pânico. Em entrevista ao Informe Ensp, os pesquisadores José Fernando Verani e Eduardo Maranhão, do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, falam a respeito de como a instituição tem trabalhado para fomentar as discussões sobre o assunto, explicam a necessidade de se manter um pensamento crítico sobre o tema e esclarecem dúvidas importantes sobre essa relevante questão de saúde pública.


Na reunião de fevereiro do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o então ministro da Saúde, Agenor Álvares, manifestou publicamente a preocupação do ministério com a gripe aviária e destacou a importância do controle de portos e aeroportos no país. Essa preocupação se justifica?


Eduardo Maranhão: A preocupação do ministro é legítima principalmente no que diz respeito ao controle de produtos alimentares a base de frango e até mesmo de pássaros silvestres que venham de países onde já houve algum caso. No caso dos produtos, é preciso pensar naqueles que vêm na bagagem das pessoas e conseguem entrar no país – e eu creio que o nosso controle ainda não é tão eficaz a ponto de garantir que isso não aconteça. Ainda que, no momento, eu pense que tudo isso representa um risco muito baixo, não se pode negar que ele existe e que, portanto, não deve ser ignorado.


 Eduardo Maranhão

Eduardo Maranhão


José Fernando Verani: Além da questão dos produtos, acho importante pensar na questão dos passageiros, ou seja, nos possíveis portadores de vírus que se dirigem ao país. Nesse caso, é fundamental destacar que ainda não foi detectado nenhum caso de transmissão entre humanos, isto é, a contaminação de uma pessoa por outra, e que, portanto, esse risco ainda não é real. É um risco potencial e que ainda sofre influência de vários fatores. Primeiramente, temos que lembrar que a gripe aviária é normalmente muito aguda, com um tempo de incubação que gira em torno de cinco ou seis dias. Logo, é muito improvável que um paciente que esteja com a gripe aviária na Tailândia, por exemplo, consiga chegar ao Brasil sem ser notado. A viagem é muito longa – dura pelo menos dois dias de avião, pois não existem vôos diretos –, o que certamente facilita a detecção de problemas com passageiros doentes nas várias escalas necessárias.


 José Fernando Verani

José Fernando Verani


E as tripulações dos navios que chegam ao país e que muitas vezes são oriundas de países asiáticos?


Verani: Bem, os navios são lentos e o mínimo que um cargueiro leva para vir da Europa ou dos Estados Unidos para o Brasil são 20 dias – da Ásia, a viagem não dura menos de 40 dias. Portanto, haveria tempo suficiente para a doença se manifestar e o doente ser isolado com segurança. Em princípio, todo navio que chega ao país recebe uma visita da vigilância sanitária – ainda que não se possa garantir o grau em que isso feito. Além disso, todo caso de doença ou morte a bordo tem que ser informado às autoridades sanitárias antes de o navio atracar. Logo, também acho bem pouco provável que a contaminação possa se dar por essa via.


Os senhores abordaram o controle de alimentos a base de frango. Já houve algum caso comprovado de transmissão do vírus por via alimentar?


Maranhão: Há casos relacionados à ingestão de alimentos, pois se o frango estiver contaminado, o vírus está na sua carne. O problema, no entanto, só ocorre se a carne for mal cozida. Acima de 70ºC, o vírus se desnatura e deixa de agir. Logo, se a carne de frango estiver bem cozida, branca e não vermelha, o risco é praticamente inexistente.


Verani: Um detalhe importante é que em quase todas as culturas, o frango é ingerido normalmente muito cozido, diferente da carne de boi ou do peixe, por exemplo, comida crua ou mal passada. De certa forma, a cultura exerce uma espécie de barreira contra a doença.


Maranhão: Na verdade, a maioria dos casos que ocorreram são de pessoas que trabalham no manejo do frango, em criações domésticas.


A Organização Mundial da Saúde (OMS) costuma alertar para a falta de vacina, no caso de uma pandemia, e a FDA chegou a recomendar o uso de uma vacina ainda em fase experimental. Essa preocupação tem razões realmente sanitárias ou está relacionada a questões comerciais que favorecem a indústria de medicamentos?


Verani: Eu penso esses dois aspectos estão imbricados e que não é possível separá-los.


Maranhão: Na verdade, ainda não foi aprovada uma vacina eficaz contra o H5N1. O que existe é uma vacina razoavelmente eficiente desenvolvida por um laboratório francês, o Sanofi-Aventis, ligado ao Instituto Pasteur, que está sendo testada em 400 ou 500 pessoas e que tem apresentado uma resposta imunológica positiva. A idéia é de que essa vacina fosse produzida e que se vacinasse primeiramente as pessoas que têm contato direto com as aves e os profissionais da área da saúde que podem vir a ter contato com pacientes contaminados pelo H5N1.


Essa vacina, no entanto, é recente e não existe possibilidade de ela ser produzida numa escala que atendesse a necessidade de uma vacinação em massa. Para isso, seriam necessários grandes investimentos. Volto a dizer que a eficácia dessa vacina é relativamente baixa, mas que melhor uma que funcione 50% do que nenhuma e os norte-americanos já estão de olho. O caso é que existe uma correria entre vários laboratórios, pois quem emplacar a melhor vacina vai ganhar muito dinheiro. O quadro é complicado, pois o interesse econômico é muito grande. Isso resulta na manipulação por meio da mídia ou mesmo das revista científicas, que constantemente alardeiam uma possível pandemia de gripe aviária.


Mas existe a possibilidade real de uma pandemia, com transmissão da forma humana do vírus?


Maranhão: É provável que ocorra? Não. Pode ocorrer? Sim. Quando e como vai ocorrer? Essa resposta é coisa de oráculo. Os cientistas fazem elaborações e como, por meio do seqüenciamento do vírus, eles constataram uma mutação num locus do H5N1 parecida com uma mutação ocorrida com o H1N1, o vírus da gripe espanhola, começaram a falar em pandemia. O fato é que essa mutação é apenas uma de cinco necessárias para que o H5N1 passe a ter o mesmo potencial de risco que H1N1. Esse processo está sendo monitorado, como deve ser feito, mas existe muito alarmismo e grandes interesses econômicos em torno dessa questão.


Verani: Houve até a história de que a Gilead, uma empresa ligada ao ex-secretário de Defesa americano Donald Rumsfeld, estaria investindo pesado nisso e comprando um grande estoque de Tamiflu, um potente antiviral, na expectativa de lucrar com isso. Boato ou não, isso motra que as empresas precisam estimular essa demanda.


Maranhão: As empresas apostam nessa demanda. Mas eu penso que uma pandemia é como uma tsunami. Pode acontecer? Pode. Onde e quando vai acontecer? Ninguém pode afirmar com certeza. Tem havido muita especulação. No início do ano passado, estimavam que em seis meses a doença já teria se espalhado e nenhuma expectativa se confirmou. Nós precisamos acreditar que a pandemia pode ocorrer em algum momento, mas não é possível estimar probabilisticamente quando isso vai ocorrer.


Verani: Uma coisa semelhante, em outra dimensão e guardadas as devidas proporções, até porque é uma doença diferente, ocorreu com a febre Ebola. Também foi criada uma expectativa muito grande, teve até filmes a respeito em Hollywood, e não aconteceu nada, pelo simples fato de o vírus não ter se adaptado ao homem. Ou seja, a doença existe, ficou isolada em regiões do Congo, mas raramente se houve falar em surtos entre seres humanos.


Como se envolveram com o tema?


Maranhão: Na epidemiologia, o nosso trabalho tem a ver com o acompanhamento da influenza sazonal por causa do programa nacional de imunização. No caso da influenza aviária, o nosso envolvimento ocorreu por causa do caos midiático que se formou em torno do tema. Agora até está mais tranqüilo, mas houve uma época que era notícia em todas as revistas e todos os jornais quase que diariamente, na forma de um terror que desabaria sobre a cabeça da humanidade a qualquer hora.


Recentemente as atenções se voltaram para a 13ª morte no Egito...


Verani: Segundo os últimos dados da OMS, foram notificados 284 casos de influenza aviária de 2003 para cá, com 169 mortes. Essa morte no Egito é um problema? Sim, mas o maior problema não é se são 13 ou 13 mil. O grande problema seria se, em algum desses casos, o vírus tivesse passado de uma pessoa para outra, o que ainda não ocorreu. A mídia faz o maior estardalhaço, usa um tom bombástico. Cabe a epidemiologia tentar organizar essas informações de forma coerente, minimizando o que é apenas especulação e alarmismo.


O que motivou a discussão sobre essa questão na Escola e qual o papel de uma instituição como a Ensp numa situação como essa?


Maranhão: No início de 2006 eu resolvi fazer uma sessão científica sobre o tema para estimular e organizar a discussão sobre o tema, até porque muitas vezes nós da epidemiologia somos demandados a opinar sobre o assunto e é preciso que nós tenhamos as informações mentalmente organizadas. Como havia muita informação tanto na mídia quanto nas revistas científicas, eu tentei sistematizar as idéias centrais e apresentei aqui no DEMQS. O Antonio Ivo, diretor da Escola, que estava presente no dia e achou a discussão muito boa, pediu que eu fizesse uma outra apresentação, para um público mais amplo, sempre com o objetivo de tentar organizar o pensamento sobre o problema, a partir dos riscos. Ou seja, não é ficar apenas discutindo se vai ou não acontecer, mas quais os riscos de isso acontecer ou não.


Com o Centro de Estudos da Ensp (Ceensp) nós organizamos o debate Pandemia de influenza aviária: uma ameaça para os humanos, ficção ou realidade e convidamos o coordenador de Vigilância de Doenças de Transmissão Respiratória e Imunopreviníveis do Ministério da Saúde Fernando Barros, a pesquisadora da Fiocruz Marilda Siqueira, que é quem trabalha com o vírus da influenza aqui na Fundação, e o coordenador do Centro de Vigilância Epidemiológica da SES/RJ, Aloísio Ribeiro, para ampliar a discussão, saber como cada instituição estava lidando com o assunto e tentar avaliar o efeito de toda informação sobre as pessoas.


Verani: Quanto ao papel da Escola, eu acho que é o de fomentar o pensamento crítico. As pessoas que estão dentro de uma instituição como a Ensp não podem simplesmente aceitar as informações que recebem, sem discuti-las, sem avaliá-las.


E qual era o quadro naquele momento?


Maranhão: Bem, se considerarmos que o público era formado por pessoas da Fiocruz, com alto grau de formação acadêmica, o quadro era realmente confuso. Houve alguns relatos, por exemplo, de uma pesquisadora que começou a estocar tamiflu em casa para uma emergência, ignorando inclusive que medicamento tem prazo de validade e que uma medida como essa tem efeito praticamente nulo. Uma outra pessoa falou que uma amiga estava apavorada porque tinha morrido um pombo no prédio e todos achavam que podia ser gripe aviária.


Verani: Eu cheguei a receber um telefonema, às 21h, de um cidadão de Magé que estava gripado e era dono de um frango que coincidentemente havia morrido. Ele pegou o frango, embrulhou num jornal e levou ao médico do posto de saúde. O médico, sem saber o que fazer, mandou que ele trouxesse o frango para a Fiocruz e ele queria saber a quem ele entregava o frango. Era um grau de pânico muito grande. As pessoas não sabiam o que fazer, a quem se dirigir, a quem se encaminhar casos suspeitos. Ninguém sabia como esses casos deveriam entrar no sistema de saúde. Mandava-se tudo para Fiocruz, como se as coisas fossem assim.


E todo esse "pânico" tem ou teve algum lado positivo?


Maranhão: Nós percebemos, com todos aqueles relatos e com toda a discussão, que havia uma grande dissociação entre os níveis municipal e estadual, que na época não tinham nada estabelecido, e o nível federal, que apresentava modelos matemáticos e falava num "plano nacional de combate à pandemia". Ficou claro a necessidade de o sistema se organizar para o enfrentamento de uma possível, ainda que pouco provável, pandemia. É fundamental que o país tenha um plano para emergências epidemiológicas, sejam elas causadas pela gripe aviária ou por qualquer outra doença, ainda que elas nunca venham a ocorrer. Dessa forma, todo esforço para se organizar um plano capaz de responder rapidamente à gripe aviária é válido, na medida que pode ajudar a melhorar as condições de enfrentamento de outras emergências, desde que se dê continuidade a isso, melhorando a infra-estrutura, treinando equipes etc.


Não se pode esquecer que essa preocupação de acelerar a capacidade de resposta dos países aos surtos e emergências epidemiológicas está acoplada a um movimento internacional, liderado pelos Estados Unidos, de defesa contra o bio-terrorrismo ou a guerra biológica. Nesse sentido, a influenza aviária tem sido usada como um modelo para que os países desenvolvam planos capazes de controlar qualquer surto ou problema em dois ou três dias. Eu só reafirmo a necessidade de se trabalhar em cima das evidências e de se pesar as evidências que existem, lembrando-se que há vários aspectos e interesses envolvidos. Há vários setores comerciais e industriais que lucram e crescem com situações desse tipo, pois o medo é um bom vendedor.


Verani: Num mundo de economia globalizada, de capitalismo exacerbado, é preciso ter em mente que a vacina é cara, pois as empresas querem recuperar os altos investimentos realizados, e que os países que mais necessitam são os que têm menos condições de ter acesso a ela. Eu li recentemente dois editorais da revista Lancet que falavam justamente sobre a redução drástica dos recursos para as universidades e centros de pesquisa, cujo trabalho sempre foi a base para a evolução da ciência. Hoje, quem pesquisa são as empresas e o objetivo é o lucro, logo elas só pesquisam aquilo que vai vender, dentro de uma visão de mercado.


Fonte: Informe Ensp

Voltar ao topo Voltar