23/05/2005
Sarita Coelho
É comum encontrar nas unidades de saúde (hospitais, postos, centros de saúde) do Brasil crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos. A violência e os acidentes constituem 59% das causas de morte nessa faixa etária, sendo as agressões responsáveis por 40% dos óbitos, segundo dados do Ministério da Saúde de 2002. Diante desse quadro, são constantes as dúvidas dos profissionais da saúde sobre o que fazer nesses casos, a quem procurar, como notificar, quando encaminhar ao IML, entre outras questões. Para orientar esses profissionais, foi criado no Instituto Fernandes Figueira (IFF), unidade materno-infantil da Fiocruz, o Núcleo de Apoio aos Profissionais (NAP) que atendem a crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos.
A equipe é formada por recursos humanos de diversas áreas, como enfermeiros, psicólogos, médicos e assistentes sociais, que trocam informações e discutem a melhor solução para cada caso. "Este é um espaço de reflexão sobre os casos que chegam a qualquer setor do hospital. O principal objetivo é atacar a desinformação dos profissionais sobre o que fazer nos casos de violência. Para nós, todo tipo de violência é importante, seja sexual, psicológica, física ou de negligência, e recebe a mesma atenção", explica a médica Rachel Niskier, que faz parte do NAP.
O grupo recebe consultas diárias encaminhadas pelos diversos setores do hospital e se reúne a cada 15 dias para discutir as questões. O trabalho é cuidadoso e resulta muitas vezes em notificação ao Conselho Tutelar, órgão autônomo encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes. Em 2003, foram 25 notificações feitas pelo IFF. No ano seguinte, o número subiu para 29. Acredita-se que a tarefa de conscientização dentro do hospital esteja ajudando os profissionais a identificar melhor os casos de maus-tratos.
Essa identificação é baseada, sobretudo, no Guia de atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência, editado pela Fiocruz, pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e pelo Ministério da Justiça, e disponível a todos os pediatras do país por meio da SBP. De acordo com a publicação, os maus-tratos são cometidos por um sujeito em condições superiores (de idade, posição social ou econômica, inteligência, ou autoridade).
Entre os sinais que podem ajudar o profissional a reconhecer esses casos, os autores citam um relato incompatível com a lesão provocada, no caso de violência física; sinais que surgem sempre quando a criança está com uma mesma pessoa, quando a criança é levada ao hospital devido a sintomas provocados pelos responsáveis (Síndrome de Munchausen por Procuração); constatação de lesões genitais ou anais, quando há abuso sexual; e aspecto de má higiene, entre outros, quando ocorre a negligência.
Entre as demandas mais visíveis no IFF, destacam-se os casos de negligência. Há muitos casos de crianças fora da escola, de mães que não seguem o tratamento da criança adequadamente, ou de crianças que ficam em casa para cuidar dos irmãos menores. Como muitos pacientes vêm de camadas pobres, é preciso discutir o que efetivamente é negligência e o que é resultado da precariedade de recursos.
Também há casos de abuso sexual. Em uma história recente, um exame identificou ruptura de hímen em uma menina de 5 anos. O agressor, identificado pela mãe, era o próprio irmão. Depois de uma série de entrevistas em separado, o Conselho Tutelar determinou acompanhamento psicológico de ambos os irmãos. Após a alta da menina, o rapaz continuou a ser atendido. O fato reflete uma preocupação com todas as pessoas envolvidas na tragédia. Os casos de violência têm como complexidade o envolvimento de toda a família, o que pode afetar a relação entre os membros e a boa convivência.
O NAP também oferece cursos para profissionais que atendem a crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos. Mais de 200 pessoas já passaram pelos três cursos já realizados E o quarto está a caminho, o que expressa a necessidade de os profissionais conhecerem melhor o tema. A violência contra crianças e adolescentes tem exigido uma luta diária e uma demanda por respostas mais adequadas. Nesse sentido, a notificação se faz cada vez mais necessária.
"Muitos profissionais têm medo de notificar e depois receberem uma retaliação. Mas aqui no IFF nunca ouvimos falar de nenhum caso do tipo. O Conselho Tutelar é o nosso maior aliado e devemos sempre procurar trabalhar em conjunto com essa instância criada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei federal 8.069/90. No entanto, nosso trabalho não termina com a notificação. É preciso acompanhar o desdobramento de cada caso. Algumas crianças chegam a ficar mais de dez anos em acompanhamento psicológico", diz Rachel. O NAP fica a disposição para trocar a experiência acumulada nos seu quatro anos de funcionamento com todos os profissionais que lutam pela redução dos casos de maus-tratos contra crianças e adolescentes.