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29/04/2020

A história da saúde indígena no Brasil e os desafios da pandemia de Covid-19

Carolina Arouca G. de Brito*


Ao longo dos últimos anos, a saúde indígena tem sido tema de importantes levantamentos e estudos sistemáticos no campo das Ciências Sociais (Brito, 2019, 2014; Cardoso et al, 2012; Coimbra, 2013; Costa, 1987; Garnelo et al, 2003; Garnelo, 2012, 2014; Pontes et al, 2019; Santos; Langdon, 2004; Verani, 1999; entre outros). Nesse conjunto de reflexões, figuram os temas das epidemias, das iniciativas de assistência sanitária, das especificidades socioculturais, das carências nutricionais, da demografia e da criação da política de saúde indígena brasileira.

Em tempos de pandemia de Covid-19, recorremos a essa literatura sob a metodologia de análise da História da Saúde, com foco nas populações indígenas, em busca de elementos processuais que contribuam para ampliar nosso conhecimento, nossa empatia e nosso compromisso social e acadêmico com os povos indígenas do Brasil.

Há tempos, nossas populações indígenas enfrentam inúmeras tensões no âmbito da saúde, desde os primeiros contatos com os não indígenas, ainda no século 16, passando pelas epidemias de gripe e sarampo, no século 20, mais recentemente com a gripe H1N1, em 2009, até a pandemia de Covid-19, em 2020. Cada uma dessas epidemias e/ou crises sanitárias impactaram de diferentes formas os grupos indígenas atingidos, seja social, econômica ou demograficamente, sendo, portanto, importante um olhar para as especificidades de cada região e de cada povo na compreensão e no enfrentamento de questões de saúde pública entre os povos indígenas. 

Figuram, ainda, nesse debate, algumas das principais iniciativas do Estado brasileiro, da sociedade civil e da academia na sistematização de um discurso sobre a saúde indígena no país (Kabad et al, 2020).  

O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi a primeira instituição brasileira, vinculada ao governo federal, voltada para a questão indígena no Brasil. Entre 1910 e 1967, o SPI desenvolveu ações pontuais de assistência sanitária aos indígenas, a partir de estruturas simplificadas de atenção à saúde, como a manutenção de alguns postos com enfermeiros e convênios itinerantes de prestação de assistência médica ou de levantamentos sanitários entre os grupos indígenas (Brito, 2011; Brito; Lima, 2014).

Nesse cenário, porém, deve-se destacar uma importante investida institucional do órgão em torno da saúde indígena, como o esboço para a criação de um “Serviço Médico Sanitário do SPI”, sugerido pelo médico Herbert Serpa, em 1947, chefe da Seção de Estudos (SE) do mesmo serviço. Seu projeto estabelecia como urgente a estruturação de uma normativa sobre a assistência aos indígenas, que contemplasse as especificidades culturais e as demandas sanitárias daqueles grupos. Como estratégia para minimizar os conflitos entre a chamada “medicina ocidental/oficial” e as práticas de cura indígenas, o projeto recomendava que os médicos e enfermeiros se especializassem em “antropologia cultural” ou no “trato dos problemas etnográficos” (Serviço Médico Sanitário do SPI, 1947).  

Foi também na SE que o cientista social Darcy Ribeiro – na época um jovem recém-formado pela Escola Livre de Sociologia de São Paulo – desenvolveu suas primeiras pesquisas de campo entre os indígenas brasileiros. Contratado como etnólogo pelo SPI, em 1947, Ribeiro percorreu, entre os anos de 1949 e 1951, a vasta região da floresta maranhense e realizou um estudo etnográfico entre os Urubu-Kaapor. Seus diários de campo e correspondências desse período são particularmente relevantes para refletirmos sobre a saúde dos povos indígenas. Em uma carta escrita para o seu professor na Escola Livre de Sociologia de São Paulo, o antropólogo alemão Herbert Baldus, por exemplo, Darcy Ribeiro relata que o seu principal trabalho no campo vinha sendo o trabalho de auxiliar de cuidados assistenciais em saúde, “enfermeiro”, em suas palavras:  

Encontramos uma epidemia de sarampo com todas as misérias que ele arrasta consigo, dizimando os índios, um horror. No último mês, percorri cinco aldeias, uma ainda não estava afetada e todas as outras desertas, os índios na mata fugindo de uma peste e levando-a consigo. Em muitas não havia uma só pessoa capaz de trazer alimentos das enormes roças que deixaram para trás na fuga desesperada, de caçar e de pescar e morriam à fome. Nestas, virei cozinheiro. Volto amanhã para a mata, vamos tentar filmar e trabalhar numa aldeia que começa a se reestabelecer, porque seria difícil achar uma sadia e poderíamos levar-lhes a doença. Talvez não saia um filme lá muito ao gosto de certa gente, índios remelando de terçol, magros de tuberculose galopante ou tossindo de pneumonia, e que sei mais de horrores, mas será um bom retrato deste SPI. (Carta de DR-HB, 24/02/1950).  

Darcy Ribeiro escreveria mais detidamente sobre a questão sanitária dos indígenas brasileiros, no texto Convívio e contaminação, publicado em 1955, pela primeira vez, por ocasião da 2ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, seguida da versão publicada na Revista Sociologia, em 1956, e transformado em capítulo do livro Os índios e a Civilização, de 1970. Nesse texto, Darcy Ribeiro reflete sobre os danos do contato crescente e inevitável entre indígenas e não indígenas, especialmente no que tangia à transmissão de doenças. Na sua visão, a desestruturação social, as carências nutricionais, a orfandade e as dificuldades na manutenção das práticas culturais/familiares eram algumas das maiores consequências dos surtos epidêmicos entre os indígenas e que desafiava a sobrevivência dos grupos indígenas na sociedade brasileira.

As dificuldades sanitárias das populações indígenas são temas recorrentes encontrados nos arquivos dos Boletins Internos do SPI. Nesses documentos oficiais ficaram registradas as principais razões para o agravamento dos surtos epidêmicos e as demandas por assistência sanitária nas aldeias. Entre as situações relatadas nos boletins estão as longas distâncias entre as aldeias e os centros urbanos, a falta de material médico e de pessoal qualificado para o atendimento, os prejuízos do contato com a população não indígena e a não observância aos tratamentos propostos pela “medicina ocidental”. Somava-se a esses fatores a forte perspectiva integracionista do SPI, que compreendia as necessidades sanitárias indígenas como algo transitório, posto que ao ser integrada à “sociedade nacional”, essa população adotaria também novas práticas sanitárias, assemelhando-se aos não indígenas.

Com o fim do SPI e a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967, a questão indígena passou a ser responsabilidade desse novo órgão governamental, porém, a pauta da saúde prosseguiu como um problema a ser enfrentado. A criação das Equipes Volantes de Saúde (EVS), na década de 1970, representou um avanço no alcance da assistência sanitária aos indígenas frente ao que existia àquela altura, porém, sem a estrutura e a regularidade necessárias para atender as demandas das inúmeras e múltiplas regiões do país.

Durante as décadas de 1970 e 1980, além da Funai, outros atores – como a sociedade civil, entre movimentos sociais organizados, pesquisadores e intelectuais de diferentes áreas – passaram a discutir de forma mais sistemática a formulação de uma política de assistência aos povos indígenas do Brasil, pautados na ampliação da assistência sanitária e no acesso à terra como pilares da saúde indígena. Foi o caso de instituições como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – que contava com a participação de antropólogos, médicos sanitaristas e cientistas sociais em seus quadros – e da União das Nações Indígenas (UNI), primeira entidade indígena criada para reunir as lideranças das comunidades indígenas e defender seus interesses no âmbito nacional (Pontes et al, 2019). 

Os debates capitaneados por esses atores sociais em torno da estruturação de um projeto de saúde indígena reverberaram na realização das Conferências Nacionais de Saúde dos Povos Indígenas (em consonância com as demandas nacionais e mais amplas da Reforma Sanitária) e também na Constituinte de 1988, sobretudo em relação à autodeterminação dos povos indígenas em oposição à relação tutelar, anteriormente estabelecida com o Estado. Como resultado dos debates iniciados na década de 1970, passando pelas Conferências Nacionais de Saúde dos Povos Indígenas e pela criação de um Sistema Único de Saúde (SUS, lei nº 8.080) para o país, em 1990, foi desenhada a Lei Arouca (nº 9.839/99, que acrescenta o capítulo V, Título II à lei nº 8.080), que instituiu no Brasil o Subsistema de Saúde Indígena como parte do SUS e rege, até hoje, os rumos da saúde dos povos indígenas brasileiros.

Em perspectiva histórica podemos dizer que a Lei Arouca, aprovada em 1999, atendeu finalmente às demandas requeridas pelo médico Herbert Serpa do SPI, em 1947, no seu plano para a criação de um serviço médico sanitário, cuja premissa estivesse pautada na inclusão de especificidades no cuidado aos indígenas, alinhado ao planejamento nacional de saúde do país. É certo que a Lei Arouca apresenta avanços importantes e incontestáveis no debate em torno das demandas por acesso a saúde pública por parte dos indígenas brasileiros, principalmente no que tange às suas especificidades culturais. 

Diferente do Plano de 1947, a Lei Arouca valoriza as práticas sociais e culturais das populações indígenas como elemento central para a estruturação da atenção à saúde indígena, e não somente como uma forma de evitar conflitos entre a medicina ocidental e as práticas indígenas de cura. Além disso, traz em seu artigo 19-H a premissa de que as populações indígenas terão direito de participar ativamente da formulação e do acompanhamento das políticas de saúde. 

É certo que o Estado brasileiro avançou com a criação de um subsistema de saúde indígena e na concepção de uma Política Nacional de Atenção à Saúde aos povos indígenas (PNASPI, 2002), porém, a saúde indígena faz fronteiras perigosas com outras demandas de ordem política, social e econômica, e, por isso, ainda hoje enfrenta desafios estruturais, especialmente relacionados à posse e à gestão da terra, elemento central na manutenção da vida social de grupos inteiros.

Nesse cenário, é possível compreender o significado amplo e estrutural do conceito de saúde para os povos indígenas ao longo do tempo. Desde as primeiras tentativas de sistematização de um Serviço Sanitário, há mais de 70 anos, caminhamos em direção à sistematização da assistência, até a criação de uma lei e de uma política de atenção à saúde dos povos indígenas brasileiros. Porém, cabem, ainda hoje, importantes reflexões acerca das peculiaridades sociais, culturais e econômicas dos diversos grupos indígenas do país, que contribuem diretamente para a situação de vulnerabilidade frente ao combate de um vírus que provoca uma severa síndrome respiratória aguda, altamente transmissível, como o Sars-CoV-2.

As ferramentas de análise processual da história não nos permitem dar as respostas definitivas para o enfrentamento da Covid-19 nas inúmeras aldeias indígenas do país hoje, mas nos ajudam a fazer as perguntas necessárias e urgentes, como, por exemplo: Quais são as justificativas sanitárias e/ou sociais para o agravamento das doenças infecciosas, sobretudo as respiratórias, entre os indígenas? Quais alternativas resolveriam o problema das longas distâncias entre as aldeias e os hospitais de referência, a fim de ampliar o acesso dos grupos indígenas ao sistema de saúde? Qual o papel do Estado diante do perigo iminente dos garimpos ilegais e/ou das invasões às terras indígenas? Como equacionar as especificidades culturais de sociabilidade e moradia com a indicação de distanciamento social para a contenção da transmissibilidade de um vírus? Quais impactos as carências nutricionais têm na saúde indígena de forma mais ampla e como essa questão pode ser solucionada num período de pandemia?

Tais perguntas atravessaram o tempo histórico, as investidas institucionais e permanecem desafiando o poder público na área da saúde indígena e, hoje, na estruturação de um plano de manejo eficiente na contenção do contágio de Covid-19, nas mais de 305 etnias espalhadas pelo território nacional, com especial atenção para a Região Amazônica que concentra, atualmente, 64% da população indígena do país. É nesse sentido que recuperarmos, na história da saúde indígena, análises sobre os impactos das epidemias e das ações do Estado no seu enfrentamento, pois têm o potencial de nos ajudar a definir os próximos passos a seguir como sociedade, academia e Estado.

*Carolina Arouca G. de Brito é bolsista de pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Ceuz (COC/Fiocruz), com bolsa da Faperj (Pós-doutorado Nota 10)

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