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30/01/2007

Historiador guia por um passeio pela antiga publicidade dirigida à saúde

Wagner Oliveira


Maria de Jesus Valle, de Belo Horizonte, relatou em depoimento dramático que sofria de desânimo imenso, falta de apetite, insônia e tédio terrível. Isso até conhecer “o valoroso preparado Capivarol”. Depois de usar apenas um vidro do produto, Maria se tornou uma moça forte, bem disposta e sem aquele tédio que tanto lhe atormentava a vida. Se para Maria a saída foi o Capivarol, para um casal que vivia trocando insultos a receita eram as Pílulas de vida do Dr. Ross, capazes de atuar na origem do problema de relacionamento, a digestão difícil.  Já o homem asseado, que não é “effeminado”, deveria usar o sabão hygienico Ross. Enquanto isso, o Biotonico Fontoura garantia força, que por sua vez era sintoma de saúde para a mulher bonita e o homem forte. O Elixir de Inhame era tiro e queda para os noivos preocupados com a sífilis. “Meu amor, olha o futuro: casar, tendo o sangue impuro, será um mal para nós dois, meu benzinho, não se zangue, primeiro, trate do sangue”, pedia em versinho a noiva.



Olhados de hoje, esses anúncios publicitários soam esquisitos, são carregados no mau gosto e até mesmo de humor involuntário. Mas houve um tempo em que a propaganda de artigos pretensamente indicados para a boa saúde era feita assim. Encarregadas de promover a popularização de drogas medicinais, cosméticos e produtos de laboratórios farmacêuticos, as propagandas promocionais eram veiculadas nos chamados “almanaques de farmácia”, que circularam durante décadas no Brasil a partir do século 19 e contam muito sobre as diferentes estratégias de persuasão para conquistar a população.


 


Milhões de exemplares de almanaques foram distribuídos por todo país para divulgar os produtos das antigas farmácias de manipulação, e posteriormente dos laboratórios farmacêuticos. Em artigo no mais recente número da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, o historiador Mário Luiz Gomes destaca alguns aspectos comuns desses almanaques que circularam pelo país e apresenta imagens de propagandas e de diferentes seções dessas publicações.


De acordo com Gomes, os almanaques tinham formato ágil e levaram, tanto a populações urbanas quanto a rurais, uma possibilidade de informação e entretenimento. A linguagem de seus anúncios ia do mau gosto à sutil prosa aliciante. Abordavam temas polêmicos para a época, como divórcio e homossexualismo, e procuravam recriar situações que se identificavam com os problemas mais rotineiros de higiene, saúde e beleza.



“As promessas de cura em soluções rápidas e baratas vinham acompanhadas de sedutoras possibilidades de realização pessoal. Convencidos pela argumentação dos textos, leitores e leitoras experimentavam o xarope, a pílula ou o elixir, na esperança da gratificação física, material e sentimental”, conta Gomes no artigo.


Segundo o historiador, a tarefa de implantar novos hábitos de higiene, saúde e beleza cabia em parte aos publicitários. Assim, saúde e beleza era o slogan preferido dos propagandistas. Textos e imagens – especialmente a partir de década de 1930 – também vão introduzir não só as regras científicas, mas novos padrões de comportamento, usos e costumes. “Em busca de mercado para seus produtos industriais, a propaganda dos laboratórios arremete contra o modo de vida passado, sobrepondo-se às práticas artesanais de medicina caseira e desqualificando-as”, diz Gomes.



Além da propaganda, vários almanaques recorreram a outros recursos de divulgação. Textos em forma de crônica e conto, contando com enredo e personagens, também compunham o espaço dos almanaques. Menotti Del Picchia e Monteiro Lobato foram alguns dos escritores que assinaram trabalhos em almanaques. Lobato, por exemplo, foi considerado o intelectual mais importante para a história da propaganda nos almanaques de farmácia. Ele incluiu na publicidade do Biotônico Fontoura o personagem Jeca Tatu, que virou sucesso nacional.


 


A tarefa de ilustração dos almanaques também contou com a participação de conhecidos artistas do passado, como Belmonte, Kohout, Kalixto e J. Carlos. Artistas que usaram de diferentes meios nos trabalhos: criaram quadrinhos de humor e desenhos de melindrosas e mulheres ao banho, compuseram peças que enfocaram a solidão da doença e a felicidade da cura, retrataram a dor e a prostação feminina nos dias de tensão pré-menstrual, a aversão infantil mesclada com a eficiência do óleo de rícino e trouxeram o glamour das louras dos estúdios de Hollywood.


Os almanaques, porém, não eram apenas um amontoado de anúncios. Segundo Mario Gomes, eles introduziram em termos populares uma possibilidade de iniciação científica, funcionando como uma espécie de guia doméstico de saúde. “O discurso, intermediado pela linguagem da publicidade, colocou à disposição de muitos, em termos de texto e imagem, o que antes constituía um conhecimento restrito a poucos”, diz. Os almanaques, frente à carência material e cultural da população, também representaram o livro e a revistinha infantil. “Em outras ocasiões, fez a vez da própria cartilha, auxiliando adultos e crianças no aprendizado da leitura”, completa.



Os almanaques começaram a minguar depois que novas técnicas de propaganda e marketing apareceram no mercado publicitário. Mas legaram aos historiadores nítidas marcas de um jeito bem particular de fazer propaganda de medicamentos.

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