02/02/2023
Karine Rodrigues (COC/Fiocruz)
Recém-transferido do Território do Guaporé, atual Rondônia, onde os Pakaa Nova tentavam defender suas terras, invadidas para a exploração de borracha, o sertanista Francisco Meireles comandava as turmas que se encarregavam de atrair e pacificar os Xavante, na região do Rio das Mortes, em Mato Grosso, em 1945, quando descreveu um cenário lastimável em um Relatório de Atividades do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). “Não posso deixar de lavrar meu protesto e manifestar minha indignação ante o estado de abandono em que fui encontrar estes índios que arrastam hoje uma existência infeliz. Frente ao que vi e descrevo nestas ligeiras linhas é que sugiro o envio de um médico e uma pequena farmácia de urgência a fim de examiná-los e providenciar hospitalização daqueles que sejam portadores de moléstias infectocontagiosas, tais como lepra, tuberculose, doenças venéreas e etc., bem como prescrever tratamento e cuidados a serem executados, com o fim de prevenir contágios e consequente propagação desses males”, registrou.
Relatório de Atividades do Serviço de Proteção aos Índios apontava necessidade de médicos e medicamentos no tratamento de enfermidades (foto: Relatório Figueiredo / Museu do Índio)
Solicitações e denúncias relacionadas à atenção à saúde indígena eram frequentes na documentação administrativa do SPI, primeiro órgão governamental do Brasil criado com o objetivo de garantir a assistência aos grupos indígenas. Surgido em 1910, como Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais, expressava, já no nome, a intenção por trás da iniciativa. A aproximação tinha o intuito integrar as populações indígenas à nação, mas com um fim específico: transformá-las em mão de obra para o desenvolvimento do país e guardiãs das fronteiras nacionais. Intitulado SPI em 1918, funcionou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), após denúncias de violações contra aqueles a que deveriam proteger.
“Ao longo do tempo, o Estado brasileiro, além de negligente, foi, por vezes, conivente com práticas que geraram o aniquilamento de populações indígenas, como a invasão das terras, a falta de atenção específica para a saúde dessas populações e contemporaneamente o avanço do garimpo ilegal. Historicamente, é possível inferir que, a partir de um modelo de desenvolvimento, que pressupunha o “avanço da colonização” dos territórios brasileiros, o Estado se mostrou omisso e muitas vezes ausente e /ou inoperante diante de graves crises sanitárias entre os indígenas. A questão indígena no seu sentido mais próprio, da vida em comunidade, que envolve a terra e a saúde dessas populações, ficava em segundo plano, na medida em que o modelo de desenvolvimento executado pelo Estado encontrava nesses indígenas uma barreira à expansão”, avalia a historiadora Carolina Arouca Gomes de Brito.
Atualmente em estágio pós-doutoral na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Carolina investigou, durante o mestrado e o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da mesma instituição, o modelo de atenção à saúde indígena no SPI e a atuação de Darcy Ribeiro (1922-1997) no período em que o antropólogo esteve vinculado ao órgão. Ela observa que a questão da saúde está presente nas fontes oficiais desde os primórdios do SPI, porém, as ações eram insuficientes e realizadas, quase sempre, de forma pontual, não havendo uma atenção sanitária regular nos Postos Indígenas. Havia uma “inconsistência no atendimento e certa “inoperância do serviço”, motivadas, segundo razões citadas na documentação, por longas distâncias, falta de material médico e de pessoal médico qualificado e culpabilização das populações indígenas, em razão da resistência ao uso de medicações prescritas pela medicina ocidental.
Darcy Ribeiro fez denúncias em sua carta de demissão do SPI
Na investigação sobre o SPI, a historiadora considera a vinculação entre as áreas da saúde e da antropologia. Na década de 1940, surge uma nova abordagem no serviço, em busca de se compreender especificidades das populações indígenas em relação à cultura local, material e suas práticas de cura. A antropologia, então, ganha espaço com a criação de um departamento especializado, chamado Seção de Estudos (S.E.), que se encarregaria de conhecer e documentar a origem, costumes, tradições e línguas, numa tentativa de equacionar a distância entre o tratamento ocidental, do SPI, e o tradicional, praticado nas aldeias. Tratava-se de uma tentativa de dar diretrizes científicas à ação assistencial do SPI. Em 1947, mesmo ano em que Darcy Ribeiro, cientista social / antropólogo recém-formado, é contratado para atuar na S.E., é idealizado, por Herbert Serpa um Serviço Médico-Sanitário do SPI. Esse Serviço Médico representou, naquele momento, uma tentativa de sistematizar o atendimento aos indígenas. Entretanto, “não há indícios na documentação oficial do órgão que esse Serviço Médico-Sanitário tenha sido efetivamente realizado”, diz Carolina.
Nesse mesmo período Darcy Ribeiro passou a realizar as primeiras pesquisas etnológicas entre os indígenas assistidos pelo SPI e seus relatos de campo revelavam a grave situação sanitária vivida por grupos indígenas inteiros, o que denunciava a omissão do Estado, resultando em mortes e desestruturação social. “Mesmo com o fim da crise epidêmica, quase sempre ocasionada pelo sarampo e /ou pela gripe, os impactos da desassistência se prolongavam nas aldeias. A fome, a desestruturação social, a orfandade, entre outros, permaneciam por meses assolando àquelas populações, como argumentou Darcy Ribeiro. . Além disso, com a mortes dos anciãos, se perdiam referências ancestrais, importantes para a manutenção cultural dos povos indígenas.
Sobre a atuação do SPI, a historiadora cita o Relatório Figueiredo, resultado de uma CPI que investigou série de assassinatos e torturas praticadas contra os indígenas durante a ditadura militar (foto: Relatório Figueiredo / Museu do Índio)
Em meados da década de 1960, o SPI passou a ser alvo de denúncias de corrupção e castigos contra indígenas. Projetos de Ribeiro foram suspensos e ele pediu exoneração do cargo. Segundo a historiadora, o antropólogo chegou a apontar algumas dessas questões em sua carta de demissão e também em textos publicados anos mais tarde, como no emblemático livro “os índios e a civilização. “Violências cometidas pelo órgão ficam muito claras, inclusive, questões muito pontuais, mas chocantes, como o uso de “velhas práticas coloniais” (termo usado por Darcy Ribeiro) de disseminação de enfermidades em grupos indígenas, a partir de material contaminado deixado nas aldeias de forma deliberada, com o objetivo de fazê-los adoecer”, detalha Carolina.
Sobre a atuação do SPI, a historiadora cita ainda o Relatório Figueiredo, resultado de uma CPI presidida pelo então procurador Jader Figueiredo Correia durante os anos 1967 e 1968, que relata uma série de assassinatos e torturas praticadas contra os indígenas durante a ditadura militar. A investigação concluiu que servidores do SPI estavam envolvidos. Entre as denúncias, foram citadas caçadas humanas com dinamites atiradas de aviões e inoculações propositais do vírus causador da varíola. Diante disso, o SPI foi extinto e substituído pela Funai.
Rumo à política pública de atenção à saúde dos povos indígenas
Na década de 1950, surge o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa), uma das primeiras iniciativas voltadas para a saúde indígena de maneira mais estruturada. Criado em 1957, não estava vinculado ao SPI, mas sim ao Serviço Nacional de Tuberculose do Ministério da Saúde. Coordenado pelo médico sanitarista Noel Nutels (1912-1973), tinha como objetivo levar às populações indígena e rural em regiões de difícil acesso ações básicas de saúde, como vacinação, controle de tuberculose e outras doenças transmissíveis e atendimento odontológico. Para isso, contava com a parceria da Força Aérea Brasileira (FAB), que disponibilizava os aviões.
De acordo com Carolina, só no fim dos anos 1970, é que se estruturou análises detidas sobre a saúde dos povos indígenas, a partir de suas especificidades étnicas e culturais. “Aí, sim, lideranças indígenas, antropólogos, estudiosos do tema, sanitaristas e representantes de instituições não governamentais se unem em torno de um novo modelo de saúde indígena, com destaque para centralidade da posse e da gestão das terras, como garantia à sobrevivência e considerando de forma mais enfática a possibilidade de relação entre o conhecimento, as práticas culturais, a sabedoria indígena nos cuidados da saúde e a medicina considerada ocidental”.
Apesar da negligência e da conivência históricas, o Estado brasileiro, diante da mobilização constante das lideranças indígenas, da academia e da sociedade civil, sobretudo, a partir dos anos de 1970, têm atuado na construção de políticas públicas de saúde para os povos indígenas, considera a historiadora. Ela cita, entre as ações realizadas, a criação das Equipes Volantes, da Funai, que replicavam o instrumental do Susa ao contar com a ajuda de aviões da FAB para realizar atendimentos nas aldeias; a realização da 1ª Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas, em 1986, em articulação com o Movimento da Reforma Sanitária; a lei Arouca, idealizada pelo sanitarista e então deputado federal Sérgio Arouca, que cria o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, vinculado ao SUS; a Política Nacional de Atenção à Saúde do Povos Indígenas, aprovada em 2002; e criação, em 2010, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
“Precisamos estar sempre vigilantes, a fim de que tais conquistas não sejam perdidas. Hoje temos um retrato triste e violento entre os Yanomami em decorrência do avanço brutal do garimpo em Terras Indígenas, associado à omissão e/ou à falta de controle do Estado brasileiro”, ressalta Carolina. Segundo ela, o momento que o país vive atualmente é “ímpar” na história da saúde indígena no Brasil, em razão, por exemplo, da criação do Ministério dos Povos Indígenas e da escolha de uma liderança indígena, Sonia Guajajara, na condução do órgão, que tem entre suas atribuições a garantia de acesso à saúde e educação e à demarcação das terras indígenas, além da escolha do, também indígena, Weibe Tapeba, o primeiro a assumir a Sesai.