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02/04/2013

Historiadora que assessora a Comissão Nacional da Verdade profere aula inaugural da Casa de Oswaldo Cruz

Jacqueline Boechat


“O passado é um território de embate. A história não acredita apenas na memória, nem a memória aceita uma história na qual não exista o direito à justiça e à vida. O papel do historiador é elaborar um artesanato delicado, alinhavando essas tramas para construir o passado”. A frase proferida na abertura da aula inaugural da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) dá o tom da complexidade do trabalho empreendido pela palestrante, Heloísa Starling, doutora em ciência política e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), como historiadora que assessora a Comissão Nacional da Verdade.


 Para Heloísa, o papel da imaginação histórica é tornar o passado acessível ao pensamento<BR><br />
(Foto: Vinícius Pequeno)

Para Heloísa, o papel da imaginação histórica é tornar o passado acessível ao pensamento

(Foto: Vinícius Pequeno)





Heloísa trouxe à discussão reflexões acerca da memória e do esquecimento, produzidas a partir do seu trabalho com os testemunhos e a massa documental que fundamentam o trabalho da Comissão da Verdade, responsável por investigar as violações aos direitos humanos cometidas por agentes do estado, entre 1946 e 1988, período que engloba o regime militar imposto pelo golpe de 1964. O processo gerou dois acervos com informações oriundas de arquivos diversos, como os da Comissão da Anistia, Conselho dos Direitos Humanos e grupo Tortura Nunca Mais.

 

O primeiro acervo é composto pelos 384 processos de brasileiros considerados opositores pelo estado e que, em 2007, foram oficialmente declarados mortos ou desaparecidos por ação política. Os documentos põem em cena a tortura, que se evidencia concretamente na imagem dos cadáveres, no testemunho dos sobreviventes e nos relatos dos peritos, como uma “fotografia congelada”, pela qual a vítima pode ser ouvida. “É preciso calçar o sapato do morto para entender o que eles viveram”, disse a historiadora. “Temos que levar em consideração as visões e os recursos disponíveis na época. Por isso, não é fácil reconstituir a história e compreender o tempo que motivou os gestos”, explicou.

 

O segundo grupo de documentos está ainda em construção, na UFMG. São fontes historiográficas com cerca de 20 mil documentos, 40 mil imagens, 17 mil canções, além de bibliografia. O objetivo desse acervo é questionar o primeiro. Esta é a massa documental que problematiza a tensão entre memória e história e produz conhecimento e que é um dos poucos recursos disponíveis para reconstruir o passado.

 

De acordo com Heloísa, o historiador deve dar sentido ao torvelinho das ideias do sujeito que experimentou os fatos, não apenas criando condições para ouvir o discurso, mas alimentando novas perguntas. Esse processo torna a relação entre memória e história produtiva, levando o relato “para fora”, estimulando a reflexão. Como a história não pode ser totalmente contada, é preciso abrir espaço para a imaginação e, para isso, o historiador pode se apropriar da linguagem da cultura – artes plásticas, canções, cinema, teatro. “Penso que também cabe ao historiador revelar em sua escrita a ciência que sonha e o verso que traz a história”, observou.

 

Internet como meio de contato com a memória

 

A partir do trabalho sobre os crimes da ditadura, Heloísa Starling reuniu um grupo de 20 alunos de graduação e pós-graduação da UFMG e está desenvolvendo um portal para a Internet, com o objetivo de apresentar as informações encontradas em arquivos históricos, oriundos de acervos como a Comissão de Anistia, Conselho Estadual dos Direitos Humanos e grupo Tortura Nunca Mais. O meio digital servirá como facilitador para a exposição de fragmentos históricos visíveis no tempo – matérias de jornal, anúncios em diferentes meios de comunicação, filmagens – e também pelo que não estava à vista, aquilo que as forças políticas da época se esforçaram para esconder.


O portal apresenta uma linguagem múltipla possibilitada pelo uso de recursos como a tecnologia 3D, ou realidade em três dimensões. “O 3D dá a impressão de aproximação com o tempo e de imersão dos espectadores nas dobras do tempo”, explicou Rafael da Cruz, um dos alunos de Heloísa, que participam do projeto. Esse tipo de narrativa permite atingir o público especializado e também é compreensível para toda a sociedade, o que é fundamental para que haja uma mobilização em torno do assunto.


Para a historiadora, existem mecanismos de esquecimento fabricados sobre esse período da história. “Produziu-se, por exemplo, uma narrativa de que não houve participação civil na ditadura. Mas quem a financiou? Quem se beneficiou dela?”, questionou. Por isso, é importante colocar a sociedade em contato com a memória a fim de evitar o esquecimento confortável, que gera um estado de melancolia e inação produzido por um passado não resolvido. “Para se ter uma perspectiva de futuro e uma democracia fortalecida, não se pode fingir que a prática da tortura e da repressão do estado foram pontos fora da curva, inéditos na história brasileira. A sociedade precisa tomar a responsabilidade para si e mobilizar-se contra a impunidade, para que tais práticas não tornem a se repetir”, concluiu Heloísa.


Publicado em 1º/4/2013.

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