
17/05/2008
Fábio Iglesias
Noite de 26 de outubro de 1910. Às 20h15, na Academia Nacional de Medicina, o presidente Hermes da Fonseca, ministros, médicos e estudantes apertam-se no salão nobre para ouvir o discurso de Carlos Chagas sobre a doença que havia descoberto em Minas Gerais, no ano anterior. As elites médica e política, entusiasmadas com a inauguração da luz elétrica nos salões da Academia naquela mesma noite, não previam o choque. Após longa conferência, Chagas exibe um filme produzido em Lassance (MG), onde crianças manifestam graves problemas neurológicos. Uma mulher é flagrada em pleno delírio. Outras imagens, como a de insetos subindo as paredes das casas, são exibidas até que às 22h30 termina a sessão. Chagas é calorosamente aplaudido, mas a batalha que enfrentaria para chamar a atenção do poder público para as endemias rurais estava apenas por começar.
|
Carlos Chagas (à direita, em pé, de branco) com paciente no Hospital de Manguinhos |
O cientista esforçava-se para sensibilizar o meio médico em relação à precariedade das regiões do interior do país. Alvo de duras contestações, foi até mesmo encarado como antipatriota. "Temiam que o estigma de nação doente afastasse a mão-de-obra estrangeira e ferisse o orgulho nacional", explica a historiadora Simone Kropf.
Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz e autora da tese Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação (1909-1962), que este ano conquistou a menção honrosa na área de história do Prêmio Capes de Teses 2007, Simone defende que os estudos e o debate sobre a doença são emblemáticos para refletir sobre a construção do conhecimento científico e a própria história do Brasil.
Negociação
Chagas atribuía o inchaço no pescoço (papo), observado em inúmeros sertanejos, à ação do Trypanosoma cruzi na tireóide. Hipótese que foi muito questionada e, de fato, posteriormente abandonada. "Os questionamentos fizeram com que Chagas revisse o peso que atribuía à correlação com o bócio. Passou então a reforçar outros elementos, como os problemas cardíacos", avalia Simone. O acordo sobre os sintomas da doença foi alcançado somente após a sua morte, em 1934. Mas seu esforço em vida para evidenciar a importância médico-social da nova enfermidade resultou em um intenso debate sobre o atraso das regiões do interior do país e o compromisso social da ciência. Questões estas que culminaram no movimento pelo saneamento dos sertões, entre 1916 e 1920.
A primeira sondagem nacional da doença é realizada em 1975. Com o combate ao inseto nas décadas seguintes, o Brasil obteve da Organização Pan-Americana da Saúde, em 2006, o certificado de interrupção da transmissão pela principal espécie vetora, o Triatoma infestans. Mas a doença de Chagas continua mobilizando cientistas de excelência, no Brasil e no exterior. Simone acredita que o centenário da descoberta, em 2009, deve suscitar muito debate sobre questões relativas à enfermidade, como as relações entre o homem e o ambiente silvestre. "Recentes casos da doença de Chagas são registrados na Amazônia, onde o barbeiro é triturado junto ao açaí e ingerido. Não se deve descuidar da vigilância epidemiológica", conclui.