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15/08/2008

Legado de fotógrafo ajuda a preservar a história da Fundação

Ricardo Valverde


Houve uma época em que os funcionários usavam terno e chapéu e chegavam por meio de barcos, que atracavam em um extinto cais, ou por trens e em seguida charretes. Do alto da colina viam – não tão distante quanto hoje, devido aos sucessivos aterros – uma Baía de Guanabara ainda limpa. Os laboratórios eram mais simples e, embora algumas lutas pela saúde pública já tivessem sido vencidas, muito ainda estava por fazer e construir. O bairro de Manguinhos, onde se situa a Fiocruz, ficava longe da região mais habitada do Rio de Janeiro – quase um sertão na então capital federal. Esse cotidiano e esse ambiente, modificados ao longo das décadas, tiveram no fotógrafo Joaquim Pinto da Silva, imortalizado como J Pinto, um grande narrador visual. Contratado há exatos 100 anos, por Oswaldo Cruz, para prestar serviços fotográficos ao Instituto Soroterápico Federal – embrião da atual Fiocruz – ele ficou quase 40 anos na instituição, produzindo fotos científicas e captando imagens que agora sobrevivem em suas fotos.


 A região de Manguinhos no início do século 20, com o Castelo da Fiocruz ao centro. Na época as águas da Baía de Guanabara chegavam ao que hoje é a Avenida Brasil (Fotos: Acervo Casa de Oswaldo Cruz)

A região de Manguinhos no início do século 20, com o Castelo da Fiocruz ao centro. Na época as águas da Baía de Guanabara chegavam ao que hoje é a Avenida Brasil (Fotos: Acervo Casa de Oswaldo Cruz)


De acordo com a historiadora Aline Lacerda, responsável pelo setor de Iconografia do Departamento de Arquivo e Documentação (DAD) da Casa de Oswaldo Cruz, o Fundo Instituto Oswaldo Cruz (IOC) reúne cerca de 20 mil itens, entre negativos flexíveis (em acetato ou nitrato), negativos em vidro e cópias ampliadas. Acredita-se que a maior parte desse material tenha sido feito por J Pinto. Ele registrou imagens de pesquisadores, instalações, construções, laboratórios, funcionários, visitantes – como a famosa visita de Albert Einstein a Manguinhos – e também dos arredores do atual campus da Fundação, o que, além da óbvia importância científica e histórica, se constitui em um valioso acervo da evolução da cidade.


“Não se conhece a existência de um acervo dessa natureza e com esse volume em outra instituição brasileira”, diz Aline. “Oswaldo Cruz, além de toda a sua representatividade para a ciência e a saúde, também teve a feliz iniciativa de documentar o que se fazia em Manguinhos, com a intenção de que esse conteúdo se tornasse material de pesquisa. Por isso ele trouxe J Pinto para ser o fotógrafo do Instituto”, afirma a historiadora.


Fotos antigas ajudaram na restauração do Castelo


O também historiador Eduardo Thielen assegura que as fotos de J Pinto, por sua riqueza e variedade de ângulos, foram importantes para a restauração do Castelo da Fiocruz, a construção em estilo neomourisco que é o símbolo da Fundação. O fotógrafo registrou centenas de imagens que mostram as paredes, as luminárias, os pisos, as escadarias, os relevos e todos os detalhes do prédio. As lentes dele também captaram a construção de outros pavilhões e do então Hospital Oswaldo Cruz (atual Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas, o Ipec), que podem ser apreciadas em um conjunto, com uma série de fotos que começa com o início do trabalho – a instalação dos alicerces – e segue até a conclusão das obras.


 Laboratório para o estudo da peste, em 1905

Laboratório para o estudo da peste, em 1905


Thielen diz que o primeiro laboratório de J Pinto ficava em uma das torres do Castelo da Fiocruz. Naquele lugar, hoje uma sala de reuniões, o fotógrafo revelou imagens como a dos vírus da varíola, entre outros tantos microorganismos captados por suas lentes. “Oswaldo Cruz dava grande valor à questão da imagem e destinava uma verba substancial para o trabalho de J Pinto, que com sua câmera estereoscópica obtinha inovadores efeitos em terceira dimensão”, avalia o historiador, que escreveu a dissertação Imagens da saúde no Brasil – A fotografia na institucionalização da saúde pública.


“J Pinto teve um papel fundamental na construção da imagem da instituição. Além disso, era um bom fotógrafo, com amplo domínio da técnica, do contraste, do enquadramento e da luz. Esse mesmo domínio pode ser visto no que ele produziu na área da fotomicrografia. As fotos de doentes e de patologias também são de grande qualidade”, diz Thielen. Segundo ele, Oswaldo Cruz tinha interesse em expor internacionalmente essas imagens em busca de reconhecimento internacional para a instituição que dirigia. Por isso também incentivou a produção de filmes sobre a febre amarela e a doença de Chagas, que foram exibidos em eventos científicos na Europa.


Filme registrou cotidiano da região


“O fotógrafo também incursionou na área da cinematografia. O primeiro filme científico feito no Brasil é de sua autoria. A obra mostrava a atuação de Carlos Chagas em Lassance, em Minas Gerais, onde o cientista descobriu a doença de Chagas em 1909”. A obra foi exibida por Oswaldo Cruz na Exposição Internacional de Higiene e Demografia de Dresden, na Alemanha, em 1911. Feito em 1910 e com nove minutos de duração, o filme, denominado Chagas em Lassance, está disponível para cópia na COC.


 Vista da antiga chaminé das instalações dos fornos incineradores, na década de 10

Vista da antiga chaminé das instalações dos fornos incineradores, na década de 10


Há evidências de que J Pinto também teria feito um filme sobre o bairro de Manguinhos. Tendo se tornado amigo de muitos pesquisadores, o fotógrafo os acompanhava em passeios mais prosaicos, como nas vezes em que, ao lado de Adolpho Lutz, os dois saíam para caçar rãs nos brejos do Méier – hoje um bairro totalmente urbanizado.


Apesar da crescente importância e do espaço privilegiado que passou a ocupar em Manguinhos, J Pinto participou de apenas uma expedição científica pelo interior do Brasil – essas viagens, patrocinadas pelo Instituto com o objetivo de conhecer melhor a realidade da saúde pública nacional e fazer pesquisas, foram muitos comuns nas primeiras décadas do século 20. J Pinto esteve apenas em Lassance. As demais, capitaneadas por Cruz, Chagas, Belisário Penna e Arthur Neiva, tiveram como fotógrafo José Teixeira. Essas expedições levaram, em 1918, à fundação da Liga Pró-Saneamento, que originou o Departamento Nacional de Saúde Pública, constituído em 1920. Este, por sua vez, foi o órgão que décadas mais tarde levou à criação do Ministério da Saúde, em 1953.


 O fotógrafo J Pinto (de colete) em trabalho de campo

O fotógrafo J Pinto (de colete) em trabalho de campo


Ver as fotos de J Pinto em 2008 é voltar a um tempo em que o Brasil estava por fazer e que homens saíam pelo interior imbuídos da missão de conhecer e transformar o país. O legado que deixaram é um patrimônio nacional. Esse tesouro pode ser consultado de segunda a sexta-feira, das 9h às 16h. O agendamento das consultas é feito pelo telefone (21) 3882-9124.


Publicado em 14/08/2008.

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