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06/11/2018

Livro aborda empresariado e políticas públicas de saúde no Brasil

Claudia Lima (Agência Fiocruz de Notícias)


O livro Empresariado e políticas públicas de saúde no Brasil contemporâneo, de Ialê Falleiros Braga, traça um panorama amplo e preciso da atuação dos empresários da saúde no Brasil. Mostra o histórico da conformação de sua representatividade e as estratégias adotadas para fazer valer seus interesses, especialmente depois da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), com a Constituição de 1988.  A autora ressalta a preocupação em "discutir a ampliação da organização do empresariado para influenciar a política nacional de saúde a partir da criação do SUS".

O texto fluente deixa claro o confronto permanente com o projeto elaborado pelo movimento sanitário, pautado em valores social-democráticos e de justiça social. "Verifica-se que as tensões entre o projeto de construção de uma saúde pública voltada para transformar as condições de vida coletivas e o outro que visa a articular a saúde pública aos interesses do mercado vêm sendo constantemente reeditadas e adquire novas formas nas duas últimas décadas", afirma a autora.

A autora apresenta o referencial teórico, faz uma revisão dos estudos que tratam da construção de uma política nacional durante a ditadura militar e delineia as arenas de disputa pelo seu direcionamento no contexto da abertura política e nos últimos 20 anos. A investigação mostra como o discurso do embate foi se deslocando para o de projeto comum. Segundo a autora, a cultura da colaboração público-privada "vem contribuindo para a substituição da noção de saúde como direito de todos e dever do Estado pela de serviço não exclusivo do Estado, a ser prestada por entes públicos e privados, mediante parceria".

Parceria público-privada

Além do processo de organização, o trabalho mostra a construção de valores. "As noções de qualidade, eficiência e relação custo-benefício vão se tornando variáveis fundamentais na competição pelos recursos públicos e pela administração da assistência à saúde, decorrentes do trabalho de difusão de ideias e valores relacionados à capacidade de gestão do setor privado como parâmetro a ser seguido pelos serviços de saúde, sejam eles privados, públicos ou geridos mediante parceria público-privadas", afirma a autora.

A leitura nos faz lembrar ou descobrir movimentos que vão e voltam ao longo das décadas. É o caso da Medida Provisória de 2001, que alterava o princípio da gratuidade do SUS e propunha a abertura de um plano privado de saúde de baixo custo - proposta vetada depois de forte oposição de forças organizadas no Conselho Nacional de Saúde (CNS). E é esclarecedora ao desvelar a complexidade das relações e o caminho que nos fez chegar ao SUS como é hoje.

"Da árdua negociação que brotou como política nacional de saúde, o SUS é fruto do embate pela ampliação de direitos de cidadania garantidos pelo Estado, num contexto mais amplo de avanço do capitalismo neoliberal, de desregulamentação e precarização das relações de trabalho, ampliação das desigualdades sociais e da pobreza nos centros urbano-industriais, assim como de desenvolvimento de novas formas de articulação público-privadas no provimento das políticas sociais", explica.

Ações no STF

O trabalho mostra uma atuação sistemática da Confederação Nacional de Saúde (CNSa) na apresentação de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF). Entre 1994 e 1996, foram ações contra leis estaduais que buscavam impedir o avanço da reforma psiquiátrica. No período de 1997 a 2002, defendiam interesses empresariais dos planos e seguros de saúde e das entidades assistenciais privadas não lucrativas.

A autora destaca os argumentos usados em defesa dos interesses econômico-corporativos: o questionamento do papel do Estado como normatizador das atividades privadas de saúde e das relações de trabalho envolvidas; e o apelo à ideia de colaboração, com vistas a conseguir isenções e benefícios por parte desse mesmo Estado.

Sistema S da Saúde

A tese também lança luz sobre a iniciativa de criação de um novo Sistema S, que seria formado pelo Serviço Social da Saúde (Sess) e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem da Saúde (Senass), com recursos da ordem de R$ 300 milhões por ano. A proposta, defendida pela Confederação Nacional de Saúde, se tornou um Projeto de Lei do Senado (PLS 131/2001). Arquivado em janeiro de 2011 por recomendação do Ministério da Saúde, mas com a possibilidade de voltar à pauta, desconsidera o papel constitucional do SUS de ordenar a formação de seus recursos humanos.

"... o PLS nº 131/2001 expressa, além da disputa em nível econômico-corporativo, a ampliação da organização das entidades empresariais de saúde e uma articulação com os pressupostos do projeto neoliberal da Terceira Via na medida em que, em sua defesa, a CNSa propõe integrar instituições públicas e privadas, representantes de empresários e de trabalhadores na área", conclui o estudo.

Gramsci

Ialê escolheu como norte teórico Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas e suas formulações acerca da relação entre Estado e sociedade civil. "A análise do movimento de organização política nas sociedades capitalistas modernas contribui para a observação crítica do trabalho diuturno das entidades de representação dos grupos e frações dominantes no âmbito da sociedade civil, com vistas à inscrição de seus interesses nos aparelhos estatais e, conforme seu grau de autoconsciência e organização, à disputa pela hegemonia", afirma a autora.

"Gramsci define hegemonia como uma relação de dominação fundamentada nos mecanismos de coerção e consenso: o primeiro, exercido com base nas leis, nos tribunais e no monopólio da segurança; o segundo, com base no convencimento e na ampla adesão aos valores, ideias e práticas do grupo dominante", explica. E avança: "Consenso é entendido por Gramsci não como sinônimo de acordo ou concordância, mas, pelo contrário, como par de coerção. O binômio coerção-consenso compreende a forma de dominação exercida pelos Estados capitalistas atuais".

Respostas

Duas questões centrais permeiam a tese: 1) as entidades empresariais de saúde elevaram seu grau de organização no contexto de formulação e implementação do Sistema Único de Saúde?; 2) a política nacional de saúde sofreu modificação substantiva no que se refere à permeabilidade aos interesses privados após a instituição do SUS? Vale ler o trabalho de Ialê Falleiros, resultado da pesquisa de doutorado em saúde pública desenvolvida na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), sob orientação de Sarah Escorel e coorientação de Ligia Bahia, para refletir sobre as respostas.

Sobre a autora

Ialê Falleiros Braga: doutora em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), com pós-doutorado em sociologia do trabalho pela Universidade do Minho (Portugal); pesquisadora do Laboratório do Trabalho e da Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz e do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento da Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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