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23/06/2005

Livro analisa a regulação da propaganda de medicamentos no Brasil


O livro "Ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado". Isto é regulação? analisa o frágil modelo regulatório da propaganda de medicamentos no Brasil e os seus danos à saúde pública. A obra, do jornalista Álvaro Nascimento, é resultado de pesquisa feita como pré-requisito à obtenção do grau de mestre em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 2003. A dissertação ganhou uma edição em livro, lançada com a chancela da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime) e do IMS.


A obra demonstra a urgência de um esforço regulatório mais rígido e abrangente, que contribua para a diminuição do uso incorreto de medicamentos, a redução dos casos de reações adversas e dos índices de intoxicação humana provocadas por produtos farmacêuticos, elevando o nível de informação e consciência da população sobre a questão e evitando o contínuo crescimento de agravos à saúde.


A propaganda de medicamentos feita hoje no Brasil entra em clara contradição com a atual Política Nacional de Medicamentos (portaria do Ministério da Saúde no 3.916 de 30 de outubro de 1998), segundo a qual o uso de produtos farmacêuticos deve se dar de forma racional, ética e correta, preconizando explicitamente um maior "controle da propaganda dos medicamentos de venda livre".


Analisada a regulação mais recente na área da propaganda de medicamentos dirigida para o grande público (a Resolução de Diretoria Colegiada 102/2000, da Anvisa), pode-se listar pelo menos três características negativas do atual modelo regulatório:


1ª - A atual regulação é feita a posteriori, isto é, a Anvisa atua após a veiculação da peça publicitária. Entre a colocação do anúncio no mercado usando-se a grande mídia (seja ela TV, rádio, cinema, outdoor, internet ou publicações impressas) e a tomada de medidas no âmbito do modelo regulatório (quando este é o caso), transcorre um período de tempo de mais de um mês, o que faz com que a ação reguladora acabe sendo realizada quando "o mal já está feito".


2ª - As multas efetivamente arrecadadas pela Anvisa, quando ocorrem as irregularidades, têm valor irrisório frente ao total de gastos com propaganda realizados no setor. Por outro lado, não há nada, no modelo regulatório atual da propaganda de medicamentos, que impeça que os valores relativos às multas sejam transferidos pela indústria para o preço dos medicamentos (o que faz com o conjunto dos gastos com publicidade de seus produtos), sendo finalmente pagos pelo próprio consumidor;


3ª - Ao estampar a frase "AO PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO" ao final de cada propaganda, a pretendida regulação implementada pela RDC 102 na verdade estimula o consumo incorreto e abusivo de medicamentos, quando caberia ao Estado cumprir justamente a tarefa oposta, de acordo com o preconizado pela Política Nacional de Medicamentos, educando a população no sentido de "ANTES DE CONSUMIR QUALQUER MEDICAMENTO, CONSULTAR UM MÉDICO". Na prática, a mensagem colocada a cada final de anúncio deseduca e presta inestimável papel à indústria e ao comércio, e não à sociedade a quem deveria proteger. O que o atual modelo regulatório transmite à população pode ser traduzido pela seguinte mensagem: "PRIMEIRO TENTE POR SI MESMO ENCONTRAR O MEDICAMENTO QUE LHE TRAGA A CURA, COMPRANDO O PRODUTO QUE JULGAR MAIS CONVENIENTE. CASO NÃO OBTENHA SUCESSO NA SUA TENTATIVA, PROCURE O PROFISSIONAL COMPETENTE PARA AJUDÁ-LO."


Seja em relação à magnitude das irregularidades (100% do universo das 100 peças publicitárias analisadas apresentaram pelo menos um tipo de infração), seja em relação à baixa eficácia das ações regulatórias (poucos são os anúncios retirados do ar e ínfimos os valores das multas aplicadas), a realidade do setor mostra que não é apenas um maior rigor na esfera da fiscalização onde reside o problema. A questão é mais ampla e se localiza na própria forma como se estrutura o modelo regulatório vigente. Mesmo que a Anvisa multiplicasse várias vezes a sua atuação, as propagandas irregulares continuariam a ser reprimidas a posteriori, as multas continuariam a ser de um valor irrisório, seus custos continuariam sendo repassados aos preços dos medicamentos (e pagos pelo consumidor) e a advertência colocada a cada final de propaganda permaneceria estimulando o uso incorreto de medicamentos, sem a devida prescrição. Pode-se afirmar, portanto, que o atual modelo regulatório da propaganda de medicamentos, na ótica do que significaria um "risco sanitário" para a população, apresenta uma substantiva fragilidade.


Assim, a principal conclusão da pesquisa que agora vira livro indica a necessidade de se estabelecer novos, efetivos e mais rigorosos mecanismos de controle público da propaganda de medicamentos no Brasil, assim como o acompanhamento de sua implementação e a avaliação de seu impacto na saúde da população.


A totalidade das 100 peças publicitárias analisadas no livro infringe a atual legislação do setor e a análise do conteúdo das mensagens de texto e das imagens da grande maioria delas mostra uma tendência de supererestimar as qualidades dos produtos anunciados e omitir seus aspectos negativos. Os anúncios enaltecem as características favoráveis do medicamento, muitas vezes lhe atribuindo uma onipotência duvidosa e uma posição central na terapêutica, sem apresentar uma sustentação com base em dados científicos.


Por outro lado, a ausência de contra-indicações (o artigo mais ferido pelas publicidades analisadas) reflete o quanto as informações sobre riscos, efeitos adversos, advertências e precauções são negadas ao consumidor. Não é exagero concluir que, do ponto de vista publicitário, veicular informações sobre riscos e possíveis agravos é visto, pelo marketing medicamentoso, como uma contrapropaganda do produto.


Os argumentos mais utilizados na propaganda analisada ressaltam, principalmente, a eficácia, a segurança, o bem-estar, a comodidade na administração, a rapidez da ação do medicamento, além do bom humor, da energia, do prazer e da felicidade que eles trazem, minimizando ao máximo, ou simplesmente excluindo, qualquer referência a riscos, possíveis interações medicamentosas ou contra-indicações. Estas, quando aparecem, em geral são exibidas em letras minúsculas, que surgem muito rapidamente, na maioria das vezes frisando apenas que aquele determinado medicamento "é contra-indicado para as pessoas com hipersensibilidade aos componentes da fórmula", evitando-se determinar quais os grupos populacionais que não devem tomar o medicamento, como idosos, crianças, diabéticos, hipertensos e outros.


Um tratamento especial a essas questões, tanto no conjunto da sociedade como no interior do SUS, pode fazer com que se supere a lógica atual, onde os interesses econômicos de expansão de mercado e acumulação de capital - consubstanciados no tripé formado pela indústria farmacêutica, agências de publicidade e empresas de comunicação - se sobrepõem aos interesses da cidadania e da saúde pública.


O autor


Álvaro César Nascimento nasceu em Niterói. Graduado em jornalismo em 1979, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), fez os cursos de especialização em nova ordem informativa internacional no Instituto Internacional de Periodismo José Martí (Universidade de Havana), em 1986, e o de informação em saúde na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fundação Oswaldo Cruz, em 1992. Tornou-se mestre em política, planejamento e administração em saúde pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 2003. Em 2004, iniciou o doutorado no IMS.

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