No século XVIII, houve um aumento do número de processos da Inquisição portuguesa contra curandeiros e esse crescimento estava associado à atuação de médicos e cirurgiões formados na academia. A explicação constitui tese inovadora, defendida pelo historiador Timothy Walker em seu livro Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo, que acaba de ser traduzido para o português, por meio de uma parceria entre a Editora Fiocruz e a Imprensa de Ciências Sociais (Lisboa). Segundo o autor, os representantes da nova medicina profissional se uniram ao Santo Ofício com o intuito de desacreditar e eliminar os curandeiros, considerados fornecedores de remédios ineficazes, concorrentes no mercado e inimigos da razão científica. Nessa entrevista para a AFN, Timothy Walker, que é professor da University of Massachusetts Dartmouth, comenta os resultados da pesquisa, fruto de extenso trabalho realizado em arquivos.

AFN: Como avalia a importância de uma edição em português do seu livro?
Timothy Walker: Meu estudo, originalmente publicado pela Brill, em 2005, traz uma contribuição significativa para a historiografia da perseguição à "bruxaria", bem como para a história da medicina e para os estudos da Inquisição no mundo lusófono. Logo, é importante que esteja disponível para uma audiência de língua portuguesa mais ampla, que não tem acesso ao texto em inglês.
AFN: A sua pesquisa se baseia em extensa documentação primária do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e outros arquivos. Como é esse trabalho de historiador-detetive?
TW: Passei mais de dois anos lendo mais de 400 processos da Inquisição, procurando evidências de colaboração dos inquisidores com médicos convencionais licenciados, cirurgiões e barbeiros. Houve dias muito longos nos arquivos. Na maioria dos dias, obtem-se apenas resultados modestos, mas, nos dias em que um documento revela uma evidência muito forte, a sensação de descobrir uma história oculta é muito gratificante. Este livro realmente conta várias histórias ao mesmo tempo, explicando as variadas motivações e ações de grupos bastante distintos: médicos licenciados e cirurgiões; curandeiros camponeses; e os inquisidores.
AFN: O tema da caça às bruxas costuma chamar a atenção, tanto de pesquisadores quanto de leigos. Como é escrever um livro acadêmico sobre um assunto que inspira romances históricos?
TW: Eu sempre pensei, enquanto trabalhava na minha tese de doutorado (que se transformou neste livro), que o projeto poderia se tornar um romance ou filme histórico bastante bom. Todos os componentes dramáticos necessários estão incluídos na narrativa. Assim, a criação de uma versão popular desse material nunca esteve longe das minhas ideias. Para mim, esses dramas muito humanos, provenientes de acontecimentos históricos documentados, ajudaram a manter o meu interesse no projeto durante o longo período necessário para completá-lo. Fora dos arquivos, eu podia visitar lugares em Lisboa que eram mencionados nos documentos que eu estava examinando - bairros ou até mesmo ruas específicas onde os médicos e curandeiros perseguidos viveram. Isso manteve o projeto muito presente e real para mim, e ajudou a me conectar com o período que eu estava estudando.
AFN: Seus resultados apontam que, no século XVIII, houve um aumento do número de processos da Inquisição portuguesa contra curandeiros. E os processos da Inquisição portuguesa contra praticantes de outras heresias? De uma maneira geral, eles eram numerosos, em comparação a outros países da Europa? Também registraram crescimento no século XVIII? Ou diminuíram, enquanto a preocupação específica com os curandeiros aumentava?
TW: Julgamentos contra os acusados de crimes de magia, incluindo a cura supersticiosa, eram apenas uma proporção muito pequena dos casos conduzidos pela Inquisição Portuguesa. Cerca de 95% dos casos conduzidos pelos tribunais de Évora, Lisboa e Coimbra eram sobre Judaísmo, a preocupação principal do Santo Ofício em Portugal. Houve períodos de intensa perseguição aos “cristãos novos” nas décadas de 1720 e 1730, mas, em geral, a segunda metade do século XVIII viu um declínio nas atividades da Inquisição. Defendo que a expansão dos casos contra curandeiros durante a “Era Iluminista” tinha tudo a ver com os interesses profissionais dos médicos convencionais em Portugal – eles manipularam a Inquisição em um esforço para desacreditar e eliminar curandeiros, a quem os médicos e cirurgiões viam como concorrentes e fornecedores de remédios fraudulentos e ineficazes.
AFN: Antes do século XVIII, pode-se dizer que as elites portuguesas eram mais tolerantes em relação aos curandeiros? Qual seria a razão dessa tolerância?
TW: Muitas elites eram clientes de curandeiros durante o período moderno; curandeiros eram o tipo mais comum de prestadores de cuidados de saúde. Se as elites eram tolerantes, era porque elas estavam acostumadas a frequentar os curandeiros populares. A reação contra os curandeiros no século XVIII foi liderada por médicos e cirurgiões oriundos das classes médias escolarizadas, e não por membros da aristocracia.
AFN: E qual a razão para o aumento da intolerância no século XVIII? Outros estudos já haviam identificado esse crescimento do número de processos contra curandeiros em Portugal, mas não chegaram a consolidar uma explicação para o ocorrido. A sua tese tem sido considerada bastante inovadora nesse sentido.
TW: Como dito anteriormente, a reação contra curandeiros no século XVIII foi liderada por médicos e cirurgiões oriundos das classes médias escolarizadas, que viam os curandeiros supersticiosos tanto como concorrentes no mercado médico quanto como fornecedores de medicina fraudulenta e ineficaz. Muitos praticantes da medicina convencional, licenciada, se viam como os arautos da nova medicina científica. Eles usaram suas posições sociais para aumentar o seu status. E isso aconteceu no momento em que a profissionalização da medicina deu a esses homens uma nova confiança e consciência em relação à sua condição social. Para eles, os curandeiros se tornaram o símbolo do arcaico, da medicina falsa, e, assim, os curandeiros viraram alvo de perseguição.
AFN: Embora numerosos, no período estudado, nenhum curandeiro julgado pela Inquisição recebeu sentença de morte. Isso sugere que os julgamentos tinham como objetivo não ‘eliminar’ diretamente os curandeiros, mas desacreditá-los perante o povo, contribuindo para uma mudança de mentalidade?
TW: Sim, precisamente. Os atos públicos de penitência e contriçaõ (autos de fé) foram projetados para causar a vergonha e o descrédito dos praticantes de todos os tipos de crimes religiosos. O propósito de desfilar curandeiros publicamente era a mudança do comportamento e das crenças populares, não só em relação a conceitos espirituais ortodoxos, mas também em relação às abordagens para a cura. Execuções da Inquisição eram raras no final do século XVIII, independentemente do tipo de crime.
AFN: Os curandeiros representavam não apenas as superstições e magias, mas também uma forma de acesso a remédios e tratamentos para as classes mais pobres. Nesse contexto, não era difícil a sociedade portuguesa prescindir dos curandeiros?
TW: Absolutamente. Ainda hoje, em Portugal, para muitas pessoas mais pobres, o primeiro recurso para muitas doenças é visitar o curandeiro ou curandeira. Portugal tem enfrentado um desafio crônico de fornecer médicos e cirurgiões treinados e licenciados em número suficiente para todas as regiões do país – este desafio remonta ao período medieval. Considerando que a qualidade da medicina "científica" era muito precária, até o final do século XIX ou início do XX, não é nenhuma surpresa que a maioria das pessoas (de todas as classes) continuou a ser cliente de curandeiros.
AFN: Os processos contra curandeiros aumentavam em Portugal em um momento de expansão do Iluminismo, justamente quando tais processos começavam a declinar em outros países. O Iluminismo, portanto, teve efeitos diferenciados em Portugal, em relação ao restante da Europa? Ou, em outras palavras, a Inquisição portuguesa, curiosamente, serviu a um propósito progressista?
TW: Nos domínios da educação e da ciência médica, Portugal manteve-se muito conservador até as reformas de Pombal em 1770. Assim, o Iluminismo veio muito tarde para Portugal, e havia um grande atraso a recuperar. Nesse contexto, a Inquisição, de fato, serviu a um propósito "progressista", na tentativa de desacreditar os curandeiros, mas, talvez, tal propósito não fosse totalmente intencional ou consciente – muitos inquisidores foram manipulados por médicos e cirurgiões que trabalhavam junto ao Santo Ofício para iniciarem investigações e processos contra curandeiros, em uma campanha de perseguição à medicina popular.
AFN: Considerar a expansão do Iluminismo associada ao recrudescimento da Inquisição é bastante curioso. Dos Saludadores, documento formulado pela Inquisição portuguesa, afirma que as curas populares não eram sancionadas por Deus, enquanto a verdadeira ciência médica teria sido criada por Deus como emprego correto da virtude natural. Conforme o senhor assinala no livro, “as ideias do Iluminismo surgem livremente associadas a uma sensibilidade mais antiga, que acreditava que Deus e Satanás desempenhavam um papel ativo na vida dos mortais”. Essas ideias não iriam contra a mentalidade científica e racionalista? Como, então, se deu essa aliança entre médicos e inquisidores?
TW: No final do século XVII e em todo o XVIII, em Portugal, os médicos convencionais licenciados e os inquisidores combinaram seus esforços contra curandeiros. No entanto, embora compartilhassem o mesmo objetivo (para desacreditar e eliminar a medicina popular supersticiosa), eles tinham razões muito diferentes para fazê-lo. Os inquisidores atacavam curandeiros por motivos religiosos, enquanto profissionais médicos e cirurgiões tinham motivações tanto econômicas quanto intelectuais e científicas. Dos dois grupos, os profissionais médicos e cirurgiões foram os mais importantes como catalisadores para perseguir os curandeiros; seus motivos profissionais eram mais fortes. Sem os médicos e cirurgiões, os inquisidores não teriam atacado os curandeiros de forma independente, pois, para o Santo Ofício, havia pouco incentivo profissional ou econômico para fazê-lo.