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13/08/2009

Livro recupera momentos cruciais do ativista e sanitarista que ajudou a criar o SUS

Edmilson Silva


Poucas são as pessoas cujas trajetórias as alçam à condição de serem conhecidas apenas por um dos seus nomes. E quando isto acontece, é porque o sonho dele fez algo marcante para a sociedade. Arouca é uma delas: um dos principais artífices da considerada maior política pública do mundo, o SUS (Sistema Único de Saúde), esse Antonio Sergio, vencido pela morte, aos 62 anos, reabilitou a Fiocruz, despertando-a do sonho profundo em que se encontrava, havia décadas: protagonizou a mais simbólica cerimônia pública da redemocratização do país, em meados dos anos 80 ao reintegrar os cientistas banidos pelo episódio conhecido como Massacre de Manguinhos, em 1970, pela ditadura militar; em um belo dia de sol, os 13 cientistas cassados foram recepcionados na escadaria do castelo em estilo mourisco, entre outras honras, com a encenação de trechos da peça Galileu Galilei, considerado o pai do moderno método científico. Em memória desse brasileiro que foi um dos grandes pensadores da saúde pública, será lançado nesta sexta-feira (14/8), às 11h, na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), o livro Arouca, meu irmão – uma trajetória a favor da saúde coletiva, coordenado por Guilherme Franco Netto e Regina Abreu. Eles assinam os textos junto com Helena Rego Monteiro, Fabrício Pereira da Silva e Sergio Lamarão.


 

 Arouca: um craque na arte de obter conquistas para o povo brasileiro (Foto: Arquivo CCS)

Arouca: um craque na arte de obter conquistas para o povo brasileiro (Foto: Arquivo CCS)


Integrante da mais numerosa família brasileira, Antonio Sergio da Silva Arouca, juntamente com a sua trupe de médicos, deu à saúde pública o papel principal de motor do desenvolvimento integrado, já que, segundo advertia, não poderia haver democratização de fato, se a Dona Maria, o Sr. João, como costumava argumentar, não estivessem gozando do bem-estar proporcionado por melhores condições de vida. Arouca se empenhou tanto em promover dignidade para todos, que, bem antes de se candidatar e chegar ao Congresso Nacional, como um dos mais votados parlamentares do Brasil, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1990, já vivia na boca do povo como filiado do Partido Sanitarista, agremiação política que nunca existiu. Como sói apenas aos líderes, antecipou em mais de uma década a categoria que passou a ser classificada como determinantes sociais da saúde.


O legado desse filho da interiorana Ribeirão Preto (SP), que escolheu o Rio de Janeiro como morada, e adotou o povo brasileiro como um filho que precisa de ajuda, apenas a grande História poderá dar conta. Entretanto, antes que isso seja feito, acaba de sair do prelo um dos frutos remanescentes da atuação de Arouca a favor da ciência voltada para a promoção da saúde pública: trata-se de uma escrita tecida a partir de depoimentos e falas reunidos em Arouca, meu irmão. O livro resulta de projeto conjunto da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), financiado pela Secretaria de Insumos Estratégicos, Ciência e Tecnologia (Decit), do Ministério da Saúde. Contou também com o apoio da Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec).


No prefácio da obra, com linguagem desempolada que apenas as cartas permitem fazê-lo, um dos pupilos do sanitarista, o ministro da Saúde José Gomes Temporão, presta contas ao amigo e mestre, informando sobre o Mais Saúde, programa que amplia as diretrizes do SUS e que “atualiza a agenda do nosso movimento de reforma sanitária para os desafios contemporâneos, constituindo-se em uma reorientação radical dessa política como passo decisivo para que o Estado brasileiro garanta a todos o direito constitucional à saúde”. É de Arouca a autoria da máxima “a saúde é um direito de todos e dever do Estado” e que está eternizada na Constituição brasileira.


Depois de destacar quão significativa é a marca da presença do epônimo da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e para onde ingressou, por concurso, em meados dos anos 1970, Temporão confessa que descobre-se, várias vezes, a se perguntar o que Arouca faria naquela situação. “Você bem sabe como são complexas as práticas e tomadas de decisões; você, como ninguém, pode avaliar as tensões permanentes entre o ideário sanitarista pelo qual militamos e as possibilidades reais de construção e imploementação de um projeto de saúde coletiva no País.(...) Não são poucos os momentos em que sentimos tremendamente a falta que você nos faz. Mas seguimos confiantes dando continuidade a um trabalho que se fará através das gerações, construindo elos entre diferentes mundos e tempos”, argumenta Temporão, antes de, brasileiramente, saudar Arouca: “Saravá, irmãzinho!”.



Doutor em saúde pública e em eloquência também, sem falar no fato de ser portador da virtude de ser mestre em sínteses, o Arouca do livro é fruto de “uma visão polifônica” da vida e obra do sanitarista, para Franco Netto, e de “um mosaico de leituras plurais sobre o percurso de um indivíduo que mobilizou e foi mobilizado por diferentes pessoas em conjunturas muito precisas da vida social e política brasileira”, segundo Abreu. Foram 67 encontros, conversas e depoimentos, alguns polêmicos, outros amenos e outros emocionantes, obtidos com pessoas que conviveram de diversas maneiras com Arouca: das três mulheres com quem, em diferentes etapas, esteve casado, passando pelos quatro filhos, amigos da militância partidária, sem esquecer, é claro, dos “companheiros da Fiocruz” – este era o tratamento usado por ele, um sorriso sempre a sublinhar a saudação.


“Arouca tinha uma grande habilidade social, que era a de gerir diferenças, conduzir diferenças a consensos, sem derrotar ninguém. E isso no partido era muito difícil, porque cada um queria derrotar o outro. Aceitar a diversidade não era uma coisa muito comum entre nós. Mas ele conduzia isso bem...”, diz Givaldo Siqueira, ex-dirigente do PCB.


Além dos depoimentos no final da obra, o livro é estruturado de tal forma que o leitor, mesmo não tendo convivido com Arouca, mas minimamente interessado em democracia e saúde,  passa a conhecer os aspectos básicos relacionados à guinada que a assistência pública de saúde foi submetida e os caminhos percorridos e o modo de ser de um dos principais idealizadores da mudança que levou à implementação do SUS.


Embora alguns depoimentos não tenham sido colhidos – devido às impossibilidades criadas pelas atribulações da chamada  vida moderna –, os organizadores, mais Helena Rego Monteiro, Fabrício Pereira da Silva e Sérgio Lamarão, conseguiram atingir a polifonia pretendida, pois no livro estão os mais diversificados desdobramentos e aspectos relacionados à vida e obra do sanitarista: das aulas de tai chi chuan, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, até à foto dele, ainda rapaz, na categoria de base do Botafogo de Ribeirão Preto, passando pela estória do bar em Jurujuba, na Região Oceânica de Niterói, refúgio para o qual ia, com mala, cuia e assessores, quando o trabalho não estava rendendo na Fiocruz, dar expedientes mais descontraídos: no lugar do cafezinho de Manguinhos, o chope gelado e bem tirado.


Desde 2003, Arouca, fisicamente, não está mais entre nós, mas quem acessa a Alameda Oswaldo Cruz, mais conhecida como Alameda das Rosas, para alcançar o Castelo da Fiocruz, no Rio de Janeiro, verá uma estátua em tamanho natural dele a saudar quem chega. E se há os que consideram desnecessária a homenagem feita em bronze a alguém que tomou a iniciativa de revigorar para o País, em seus aspectos mais amplos, a instituição cuja presidência ocupa o prédio que Oswaldo Cruz legou ao Brasil como o templo da ciência, ciência para a saúde pública, também há os que acham que depois da disposição dela ali, a paineira passou a florir mais intensamente.


Serviço


Arouca, meu irmão – uma trajetória a favor da saúde coletiva

Editora: Contracapa, 269 páginas, R$ 37

Coordenação: Guilherme Franco Netto e Regina Abreu

Local do lançamento: auditório térreo da Escola Nacional de Saúde Pública (Avenida Leopoldo Bulhões 1.480 / Avenida Brasil 4365, em Manguinhos)

Horário: 11 horas


Publicado em 13/8/2009.

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