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03/05/2006

Maria Careli: a história de uma mãe brasileira

Ricardo Valverde


Domingo, Dia das Mães, milhões de mulheres em todo o Brasil serão homenageadas e receberão filhos, netos e parentes para comemorar a data. Ganharão flores, presentes, beijos e abraços. Entre elas estará Maria Careli, que já começou a preparar o almoço de domingo e sorri diante da proximidade do nascimento de seu primeiro bisneto, previsto para o final deste ano. É mais um exemplo da vida que se renova, como em tantas outras famílias espalhadas pelo país afora, apesar das dificuldades que o cotidiano impõe. Aos 78 anos, Maria aguarda a chegada da quarta geração da família 13 anos depois de um brutal e inexplicável ato de violência ter tirado a vida do caçula de seus filhos, Jorge, um servidor da Fiocruz que foi surrado e assassinado por policiais da Divisão Anti-Seqüestro (DAS) da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O corpo de Jorge Careli jamais foi encontrado.


 Maria Careli na cama que era do filho. Ao lado do móvel, um retrato de Jorge (Foto: Ana Limp)

Maria Careli na cama que era do filho. Ao lado do móvel, um retrato de Jorge (Foto: Ana Limp)


Moradora da comunidade do Amorim, que faz parte do bairro de Manguinhos, onde está situado o campus da Fiocruz, Maria tem uma história familiar parecida com a de muitos brasileiros que nas décadas de 40, 50 e 60 promoveram um dos maiores êxodos rurais do mundo ao se mudarem para as cidades. Mineira de Cataguases, ela veio para uma Duque de Caxias ainda bucólica, com pais e quatro irmãos, aos 16 anos, em 1944. O pai se tornou caseiro de um sítio onde se criavam porcos e galinhas. A mãe lavava roupas para fora. Os filhos, diante das necessidades dos Careli, tinham que ajudar em casa, trabalhando. Assim, Maria se tornou babá numa família que morava na Praça da Bandeira. Para chegar ao local, pegava um trem em Caxias às 5h, depois de acordar às 4h – se perdesse a composição, só conseguiria outra às 11h. Ela só voltava para casa no fim de semana. Mas a experiência duraria pouco. “Meu pai morreu e meu irmão mais velho pediu à minha patroa que não me deixasse sair de casa. Mas como eu passearia com a criança se não podia sair? Então voltei pra casa”, lembra Maria.


Ao retornar para o sítio, ela pôs a mão na terra para ajudar a família na horta: plantavam milho, couve e pimentão, entre outros. Não demorou muito e Maria, com 19 anos, novamente se empregou numa casa de família, em Benfica. Numa época de racionamento de trigo, ela veio a conhecer seu futuro marido, um padeiro nascido em Paty do Alferes (RJ) chamado Antonio Careli, que simpatizou com a jovem morena e sempre dava um jeito de ela furar a fila do pão. Depois de algumas rápidas conversas, entre um pão e outro Antonio pediu a Maria que o deixasse ir à casa onde ela trabalhava, para poderem conversar com mais calma. A patroa, seguindo recomendação do irmão mais velho de Maria, permitiu, mas os dois enamorados conversavam separados pelo portão (trancado a chave) da casa onde ela trabalhava – afinal, eram os anos 40.


Depois de um ano conversando no portão, Antonio quis conhecer a mãe de Maria. E lá foram os dois – com a filha da patroa e mais outra pessoa, já que não ficava bem para uma moça passear sozinha com um rapaz – para Caxias, onde o padeiro conheceu toda a família e para onde passaria a ir duas vezes por mês. Com dois anos de namoro ficaram noivos. E foi só a partir do noivado que Antonio e Maria, finalmente, se deram as mãos, porque até aquele momento não haviam tido nenhum contato físico. O casamento ocorreu um ano depois do noivado e o casal foi morar, por pouco tempo, em Nova Iguaçu. Mudaram-se então para Ramos, onde nasceram as sete filhas. O último, o único filho homem, Jorge, nasceu na casa em que Maria reside há 40 anos, em Manguinhos. Uma confortável casa de três andares construída aos poucos, por Antonio.


Maria tem quatro filhas vivas – três vivem no Amorim e uma em Olaria –, seis netos e, em poucos meses, terá o primeiro bisneto. Numa casa com imagens de São Jorge, da Escrava Anastácia e de Cristo, Maria, que mesmo viúva continua a usar a aliança de casamento, mantém quase intacto o quarto que era de Jorge. Lá estão algumas roupas, sapatos, um rádio, porta-retrato com foto do filho e uma surrada bandeira do Flamengo – que Jorge costumava desfraldar nos dias de vitória do time rubro-negro.


Contida em suas emoções, Maria – que do terraço de sua casa sabia quando o filho saía do prédio da Fiocruz em que trabalhava, porque como zelador ele era o último a sair e portanto apagava as luzes – passou a ter pressão alta e de vez em quando sente falta de ar. Mas a enorme tristeza, a dor irreparável que significou o assassinato de Jorge não tiraram dessa mulher de fibra a vontade de viver e estar com a sua família. E é na figura dessa valente brasileira, que lutou para saber o que aconteceu com o filho morto pelo aparelho policial, que a Fiocruz homenageia todas as mães brasileiras, no dia delas.


O caso Careli


No dia 10 de agosto de 1993, aproximadamente às 20h, o servidor da Fiocruz Jorge Careli falava em um orelhão público da favela de Varginha, em Manguinhos, quando, segundo testemunhas, foi abordado, espancado e levado para uma Kombi por policiais da DAS que iniciavam uma batida no local em busca de um suspeito de seqüestro.


 Jorge Careli nas escadarias do Castelo da Fiocruz

Jorge Careli nas escadarias do Castelo da Fiocruz


A imprensa começa a cobrir o caso e a Fiocruz mobiliza a sociedade para a busca de Careli. Os dias se passam e provas irrefutáveis aparecem. A polícia admite a possibilidade da participação da equipe da DAS - então chefiada pelo delegado Hélio Vígio. Numa Kombi da DAS são descobertos restos de cabelo, vestígios de água e perfurações de bala.


Após mais de dois anos de processo, uma sentença de absolvição tão estúpida quanto injusta: o juiz Heraldo Saturnino de Oliveira, da 6ª Vara Criminal, conclui que "não há dúvida de que Careli foi espancado e talvez morto por algum dos réus, mas não logrou a acusação demonstrar quem, entre os 23 acusados, assim agiu e muito menos conseguiu provar a adesão dos demais policiais à prática ilícita". São absolvidos 22 acusados e a punibilidade do acusado Armando Correia da Silva fica extinta por causa de sua morte.


A Presidência da Fiocruz, a Asfoc e outras instituições de defesa dos direitos humanos denunciam a absolvição à Anistia Internacional e à Comissão de Direitos Humanos da OEA e a promotoria entra com recurso no Tribunal de Justiça. Em 25 de agosto de 1995, Lindalva dos Prazeres testemunha ter visto Careli na "sala do pau" da DAS na manhã de 11 de agosto de 1993. "Eu perguntei a ele, você é seqüestrador? E o rapaz disse: não, eu trabalho na Fiocruz", contou Lindalva, durante entrevista ao Jornal Nacional da TV Globo. O Ministério Público reabre o caso mas, meses depois, ao término da apuração, o juiz Heraldo Saturnino ratifica a sentença anterior.


Em 1999, com o governo do Estado do Rio de Janeiro reconhecendo sua responsabilidade, os pais de Careli, Antonio e Maria Careli, receberam, cada um, uma indenização de R$ 22,5 mil por danos morais e pensão mensal de R$ 875 por danos materiais. O corpo de Careli nunca foi encontrado.

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