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09/08/2006

Monteiro Lobato e a gênese do Jeca Tatu

Ana Palma


Editora Senac
 

 

 

 Prolongamento das campanhas sanitárias, as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz, no início do século 20, permitiram um maior conhecimento das moléstias que assolavam o país e possibilitaram a ocupação e a integração do interior brasileiro. O Brasil é um país doente, diziam os pesquisadores de Manguinhos. E provavam. O retrato sem retoques da miséria, da desnutrição e das moléstias de nosso povo vinha jogar por terra o idealismo romântico de nossos intelectuais, influenciando a vertente realista que surgia.

 

Essa influência se fez sentir em maior grau em Monteiro Lobato. Seu contato com as pesquisas de Manguinhos, principalmente os trabalhos de Belisário Pena e Arthur Neiva, levaram o criador de Emília a alterar completamente a concepção de um de seus famosos personagens, o Jeca Tatu, e engajar-se numa campanha pelo saneamento do país.
 

"O Jeca não é assim: está assim"

Jovem promotor mal remunerado, Monteiro Lobato improvisa-se de fazendeiro ao herdar terras de seu avô. Em fins de 1914, uma seca terrível assolava a região. O problema era agravado pelas queimadas; Lobato, indignado, descobre que não pode punir os incendiários, "pois eleitor da roça, naqueles tempos, em paga da fidelidade partidária, gozava do direito de queimar o mato próprio e o alheio." Escreve então uma carta de protesto ao jornal O Estado de S. Paulo. Tal era a qualidade do texto que o jornal publica-o com destaque sob o título A velha praga.

"Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização..."

Foi pouca a repercussão do primeiro artigo, mas Lobato, apaixonado pelo tema, volta a abordá-lo em um segundo texto, Urupês, publicado a 23 de dezembro do mesmo ano, e que transforma o fazendeiro improvisado no escritor e polemista de renome nacional.

Com enorme virulência, Lobato ataca o "indianismo balsâmico" de José de Alencar, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, agora travestido em "caboclismo". E compara o caboclo ao "sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas". Surgia o Jeca Tatu, nome que se generalizou no país todo como sinônimo de caipira, homem do interior.

"Quero mostrar a essa paulama quanto vale
um homem que tomou remédio de Nhá
Ciência, que usa botina cantadeira e não
bebe um só martelinho de aguardente."

A repercussão foi grande e atinge nível nacional quando Lobato, já bastante conhecido, decide, em 1918, reunir seus artigos num livro. Seu título, também Urupês, graças a uma sugestão do sanitarista Arthur Neiva, a quem Lobato acompanhara numa campanha de combate à malária e à ancilostomose em Iguape, interior de São Paulo.

As três primeiras edições esgotam-se rapidamente. Os jornais alimentam a polêmica. Os saudosistas se indignam: afinal, o caboclo era o "Ai-Jesus nacional". Mas vem a suprema consagração. Rui Barbosa, que jamais citara qualquer autor vivo, refere-se a Jeca Tatu, "símbolo de preguiça e fatalismo, de sonolência e imprevisão, de esterilidade e tristeza, de subserviência e embotamento" num discurso no Teatro Lírico.

Mas a convivência com Neiva e Belisário Pena, o contato com seus pesquisadores e a leitura do livro de Pena, O saneamento do Brasil, já haviam levado Lobato a rever totalmente sua concepção de caboclo. E no prefácio à quarta edição de Urupês, ainda em 1918, penitencia-se:

"Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte."

"Um país com dois terços de seu povo ocupados em pôr ovos alheios"

Editora Senac
 

 

 

 Lobato não pára por aí. Indignado com a situação do país, lança-se numa vigorosa campanha jornalística em favor do saneamento. Expõe sem pudores a realidade nacional: "O Brasil é o país mais rico do mundo, diz com entono o Pangloss indígena. Em parasitos hematófogos transmissores de moléstias letais - conclue Manguinhos." Apresenta as estatísticas: 17 milhões com ancilostomose, três milhões com Chagas, dez milhões com malária. "O véu foi levantado. O microscópio falou".

 

Investe contra os falsos patriotas que o criticaram por expor nossa miséria e associa a questão sanitária à economia do país. "Só a alta crescente do índice de saúde coletiva trará a solução do problema econômico... Não fazer isto é morrer na lenta asfixia da absorção estrangeira."
 

Critica os bacharéis e políticos, a quem denomina com ironia de Triatoma bacalaureatus, atribuindo-lhes a situação caótica do Brasil. Censura o descaso de nossas elites: "Legiões de criancinhas morrem como bichos de fome e verminose. Nós abrimos subscrições para restaurar bibliotecas belgas."

É impressionante a atualidade de algumas de suas críticas. Lobato denuncia fraudes nos produtos consumidos pela população. E ironiza as parcas verbas concedidas à saúde pública, lembrando que enquanto se gasta "123 mil contos no Teatro Municipal e 13 mil na exposição Pena" (100 anos da Abertura dos Portos), oferece-se apenas mil a Belisário Pena.

"Sempre cabem 50 réis para cada duodeno afetado. Esta quantia, reduzida a timol, dá para matar pelo menos uma dúzia de ancilostomos dos três milheiros que, em média, cada doente traz consigo. Os 2.988 ancilostomos restantes ficarão aguardando verba."
E elogia Manguinhos: "Só de lá que tem vindo e só de lá há de vir a verdade que salva e vence..."

A campanha de Lobato acaba forçando o governo a dar atenção ao problema sanitário. Cria-se uma campanha de saneamento em São Paulo, sob o comando de Arthur Neiva. O código sanitário é remodelado, transformado em lei. E o escritor reúne seus artigos sobre a questão no livro O problema vital.

Mas Lobato achava necessário não mobilizar apenas as elites, mas alertar e educar o povo, principal vítima da falta de saneamento. Escreve então Jeca Tatu - a ressurreição. O conto, mais conhecido como Jeca Tatuzinho, serviu de inspiração para uma história em quadrinhos bastante popular, que foi divulgada em todo país através do Almanaque do Biotônico Fontoura. Jeca, considerado preguiçoso, bêbado e idiota por todos, descobre que sofre de amarelão. Trata-se. E transforma-se em fazendeiro rico.
 
Dezembro/2003

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