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04/04/2008

Morre o último sobrevivente dos cientistas cassados no Massacre de Manguinhos

Fábio Iglesias


“O senhor é partidário do Partido Comunista livre?”


“General , vou lhe contar, a primeira vez que eu estive na Europa, estive com uma bolsa do governo alemão. E o quê que eu vi na Alemanha? Seis meses de frio, em que se pode plantar, e seis meses que não se pode plantar. E não tem dúvida nenhuma que a Alemanha é um dos países mais desenvolvidos no mundo! E o quê que nós vemos no Brasil, general? O ano todo nós temos primavera, é primavera perene, constante e entretanto, general, com toda essa possibilidade, nós temos nossos compatriotas passando fome. O quê que expressa isso, general? A culpa é sua, é minha, e de todos aqueles que tiveram uma oportunidade de fazer uma universidade. E isso expressa o quê? A incapacidade absoluta das classes dirigentes de resolverem os problemas do Brasil. Isso é que é política, é solução dos problemas brasileiros. Então general, eu faço pesquisa científica, eu faço ciência, eu sou absolutamente favorável ao Partido Comunista livre, porque é uma nova opção política para a solução dos problemas brasileiros".


O general virou-se e o interrogado pensou: "Bom, acabou a pergunta”.


 Perissé (o primeiro à esq) e os demais cientistas cassados no Massacre de Manguinhos (Fotos: Arquivo COC)

Perissé (o primeiro à esq) e os demais cientistas cassados no Massacre de Manguinhos (Fotos: Arquivo COC)


Mesmo sem a réplica de seu inquisidor, Augusto Cid de Mello Perissé, o interrogado acima, foi cassado com outros nove pesquisadores de Manguinhos, nos anos 70. Seu laboratório trancado e seus equipamentos destruídos. “Como trabalhava com química, eles imaginavam que eu podia fazer uma bomba”, contou rindo para a historiadora Wanda Hamilton, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC), uma unidade da Fiocruz, que o entrevistou em 27 de fevereiro de 1986. Perissé morreu no último domingo (30/3), no Rio de Janeiro, aos 90 anos, de falência múltipla de órgãos.


O cientista, que acreditava que o mundo caminhava para o socialismo e que trabalhava com a firme ideologia de transformar a realidade nacional pela ciência, nasceu em 30 de abril de 1917, em Barbacena (MG). Ingressou na Fiocruz em 1943, como químico analista. Em Manguinhos, foi tecnologista, professor, pesquisador e organizou o laboratório de química orgânica. Também lecionou química no Instituto de Tecnologia do Rio de Janeiro e na Universidade Federal da Bahia.


Em 1957, viajou para Frankfurt, Alemanha Ocidental, a fim de realizar um curso de pós-doutorado como bolsista do Serviço Germânico de Intercâmbio Acadêmico. Em seguida, passou dois anos no Collège de France, em Paris. Retornou à França, em 1965, como pesquisador visitante do Instituto de Química de Substâncias Naturais, publicando vários trabalhos.


 O cientista foi reintegrado ao quadro de pesquisadores da Fiocruz em 1986 

O cientista foi reintegrado ao quadro de pesquisadores da Fiocruz em 1986 


Membro da Sociedade Brasileira de Química, da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), das Sociedades de Química de Londres e da Alemanha, além da Sociedade de Biologia do Rio de Janeiro, Augusto Perissé, em 1970, teve seus diretos políticos cassados e foi aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5). Embora tenha sido aprovado em concurso para professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (SP), foi impedido de ocupar o posto devido a sua cassação. Além disso, foi obrigado a interromper suas pesquisas sobre venenos de Diplopodas (gongolô) brasileiros.


Em 1971, viajou para a França a convite do professor Mester, voltando a trabalhar no Instituto de Química de Substâncias Naturais, onde permaneceu até 1975. Diretor de pesquisa do Instituto de Saúde e Pesquisa Médica de Paris, Augusto Perissé esteve ainda no Instituto Max Planck, de Heidelberg, trabalhando com síntese automática de proteínas, e na Universidade Técnica de Munique.


Augusto Perissé recomeçou seu trabalho em Manguinhos, em 1981, como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), prestando consultoria à Vice-Presidência de Desenvolvimento e retomando suas pesquisas sobre os Diplopodas e sobre química e bioquímica da hanseníase. Em 1986, foi reintegrado ao quadro de pesquisadores da Fiocruz. Devido a problemas de saúde, afastou-se do cargo em 1994.


As informações acima foram obtidas na transcrição da entrevista concedida em 1986, com 3 horas e 30 minutos, e em outros textos publicados pela Casa de Oswaldo Cruz. Interessados nas memórias de Perissé e de outros cientistas podem consultar os resumos publicados aqui ou obter os documentos integrais na Sala de Consulta (sala 416) do Prédio da Expansão da Fiocruz: Avenida Brasil 4.036 – Manguinhos, Rio de Janeiro. Telefone: 21 3882-9124.

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