A pandemia do coronavírus e as medidas que, acertadamente, vem sendo tomadas para conter a disseminação do vírus trazem importantes desafios para as mulheres. Tanto as previsões feitas quando a epidemia ainda estava restrita à China, quanto às notícias que se seguiram ao avanço da epidemia, noticiaram e noticiam o aumento dos casos de violência contra as mulheres. Não existe um país afetado pela Covid-19 que não esteja lidando com esse problema, mas ao mesmo tempo, poucas são as iniciativas que vêm sendo tomadas para lidar com essa ‘consequência’ da epidemia. O aumento dos casos de violência contra as mulheres, nesse momento, ajuda a pensar a efetividade que os investimentos que as sociedades vêm fazendo para enfrentar esse grave problema social.
No Brasil, as políticas públicas nessa área são bem jovens, iniciaram de forma mais estruturadas e orientadas por uma agenda de defesa dos direitos das mulheres no início dos anos 2000 (especificamente em 2003), com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Desde então, o eixo norteador da efetivação da política tem sido a conformação das redes de enfrentamento à violência contra as mulheres, ação que põem em diálogo e trabalho diferentes serviços e equipamentos que atendem mulheres em situação de violência. O trabalho em rede requer o encontro dos diferentes atores e atrizes sociais no exercício contínuo de se pensar e avaliar as ações que são executadas. Tempos recentes da política nacional ameaçam o esforço de diferentes estados e municípios brasileiros, como a Emenda Constitucional no 95/2016 que, ao congelar os gastos públicos, colocou em risco as políticas mais recentes, com orçamentos reduzidos e, por isso mesmo, ainda frágeis em termos de organização e resultados efetivos.
O Estado de Minas Gerais foi bastante ativo na estruturação de redes municipais e regionais de enfrentamento à violência, apoiando a conformação de Centros de Referência da Mulher (CRM), movimento que ocorreu especificamente entre 2015 e 2018. Uma pesquisa conduzida pela Fiocruz Minas procura compreender como essas redes se conformaram e vêm atuando no estado. Em nosso percurso por esse campo de investigação, temos percebido que as diferentes redes constituídas sofrem com a instabilidade profissional (seja devido à rotatividade no cargo ou pelo fato de vários profissionais não serem efetivos, estando constantemente ameaçados de demissão ou finalização do contrato), além do frágil apoio institucional, já que várias não estão formalizadas e dependem do exercício contínuo de convencimento e militância sobre a importância das instituições trabalharem em rede. Esse exercício também tem uma forte dimensão educativa, alinhada com os preceitos da educação permanente, que chama o indivíduo a refletir cotidianamente sobre sua prática em prol do aprimoramento e do alcance de mudanças reais.
Nesse cenário de fragilidade, materializam-se os efeitos da Covid-19, por exemplo, quando optamos pelo isolamento social em casa. Opção que vem revelando desafios, sobretudo para as mulheres e que tem pressionado as políticas públicas envolvidas no enfrentamento à violência contra as mulheres. Além da violência que aumenta com a quarentena, o fato das pessoas estarem em casa escancara a desigual economia do cuidado, em que a responsabilidade e sobrecarga do trabalho doméstico e dos cuidados com doentes, criança e idosos são das mulheres. Assim, “a pandemia tem gênero”, como recentemente afirmou a antropóloga Débora Diniz em entrevista publicado na Folha de São Paulo no dia 6/04/2020. Nessa entrevista, Débora Diniz também comenta sobre o fato de que as mulheres perderam “um elo fundamental para a sobrevivência: a conexão com outras mulheres”.
A dimensão da conexão é também o que dá sentido às redes de enfrentamento à violência contra as mulheres, pois a articulação dos serviços e trabalhadores depende de um olhar holístico sobre esse fenômeno e da interdependência das ações para serem efetivas. A construção de uma perspectiva holística e de ações articuladas depende dos vínculos que se estabelecem entre as pessoas e instituições que lidam com a violência. Assim, tal qual como a vida das mulheres que vão se organizando e viabilizando a partir das conexões que constroem e acionam ao longo de suas vidas, a existência de uma política pública comprometida com o enfrentamento (e, utopicamente, com a sua eliminação) da violência contra as mulheres também se constrói a partir dos agenciamentos e que, assim, fortalecem as redes. Nesse sentido, o conceito ‘conexão’ tem uma forte dimensão feminista, pois é, para várias mulheres, a única possibilidade de sobrevivência. Assim, não fortalecer conexões e redes entre políticas públicas de proteção é assumir uma posição de descaso com as mulheres e de perigoso flerte com o feminicídio, que será mais um possível efeito da pandemia de Covid-19 no Brasil e no mundo.
*Paula Dias Bevilacqua é pesquisadora da Fiocruz Minas
Texto publicado originalmente no site Pensar a Educação, Pensar o Brasil.